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Aramis

Agnes, o olhar para a solidão feminina

A abordagem de jovens que, em contestação à sociedade de consumo, se auto-marginalizam não é novidade. Afinal, mesmo antes da explosão dos anos 60, da linha "on the road", dos "beatniks keroucianos" - aos quais se sucederia a geração "flower & love", a natural rebeldia jovem sempre foi uma característica - em diferentes nuances. Entender, porém, esta rebeldia, ter a sensibilidade para não ficar em maniqueístas (e prepotentes) posições de julgamento do que leva, tantas vezes, a jovens queimarem etapas e, caindo na estrada, sacrificarem-se num holocausto precoce, é uma tarefa que os artistas que tem a felicidade de manejarem seus instrumentos - as palavras, as imagens, a narrativa - buscam. "Os Rejeitados" (Cine Groff, 5 sessões), não é, portanto, o primeiro - e nem será o último - filme a focalizar a breve trajetória de uma jovem desajustada dentro da sociedade. Entretanto, poucas vezes se fez um filme de tamanha ternura, entendimento e compreensão em torno dos "drop-out" como este surpreendente "Sans Toit Ni Loi", que nos quebra um jejum em torno do melhor cinema francês - e especialmente da obra de uma das mais significativas realizadoras daquele país, Agnes Vardá, cujo último filme visto no Brasil (e assim mesmo por muitos poucos espectadores) foi "Duas Mulheres, Dois Destinos" ("L'Une Chant, L'Autrepas"), de 14 anos passados. A narrativa de "Os Rejeitados" é fragmentada, em flash-back - técnica que desde "Cidadão Kane" (1940, Orson Welles) tem sido perseguida por outros realizadores, nem sempre com felicidade. Só que neste caso, Agnes Vardá, unindo sua experiência de 33 anos de cinema e uma visão feminina, conseguiu desenvolver de forma dialética. Numa manhã de inverno, Simone Bergeron, chamada Mona, é encontrada numa vala, morta, ao lado de um vinhedo. Sem documentos, a polícia ignora quem seja. Uma voz (a própria Agnes) inicia uma narrativa, reconstituindo os últimos meses da vida da jovem. Mochila nas costas, percorre, em pleno inverno, o Interior da França. Uma paisagem solitária, entristecida, na qual a sua presença hippie causa reações diferentes com as pessoas que com ela cruzam. Pouco se sabe a seu respeito: estenógrafa, deixou um emprego para, sem ter que se submeter a horários e obrigações, buscar a sua liberdade. Não é uma prostituta: ao contrário, o sexo acontece poucas vezes a contragosto, sem qualquer prazer - e para não transar em troca de favores, prefere caminhar no frio do que continuar como carona de um motorista. Só com Assoum, um emigrante tunisiano (Yahiaoui Assouna), estabelece um pequeno vínculo afetivo - rompido entretanto quando os companheiros tunisianos não concordam que permaneça na habitação coletiva. Traços ecológicos se estabelecem - desde a vida natural, procurada por um ex-ativista dos anos 60, vivendo do cultivo da terra e do pastoreio, ao lado da esposa e filhos, ao trabalho da professora M.me. Landier (Macha Méril), consultora do serviço de agricultura que tenta evitar a proliferação de um programa que procura uma espécie de "câncer" nas outrora frondosas Platanos. Um dos assistentes da Sra. Landier, o agrônomo Jean-Pierre (Stéphane Freiss), estabelece uma ligação com outros personagens - a enfermeira Yolanda (Yolanda Mureau), seu amante Paul (Jool Faussi) e a mais cativante, a octogenária Madame Lydia (Marthe Jarnias). Personagens que se entrecruzam na trajetória de Mona, tocando-a mais ou menos em suas reações. Irritante como comportamento rebelde no início, aos poucos a solidão, a falta de perspectivas, um niilismo precoce de Mona - de cujo destino ninguém se incomoda - começa a conquistar o espectador. O olhar-câmera de Agnes Vardá permanece numa distância crítica em relação aos personagens: acompanha Mona, suas reações - algumas inesperadas, que vão de uma preguiça e inconformismo (quando, após falar de seu desejo de trabalhar na terra, mostra-se ociosa ao lhe ser dada esta oportunidade) ou a ternura em outros instantes. Filmado em exteriores, na zona rural, durante o inverno, "Sans Toit Ni Loi" é triste nas imagens de Patrick Blosier. A trilha sonora de Joanna Bruzdowicz soma à música própria também alguns hits de sucesso da época, nas vozes de The Doors e de Rita Mitsuko - além de um cortante solo jazzístico no pistão de Pontopoffi na seqüência final. Para quem acompanha a carreira de Agnes Vardá, 62 anos, "Sans Toit Ni Loi" não deixa de ser surpreendente: é, possivelmente, seu trabalho mais social. Para quem era acusada de diluitiva (e superficial) na contemplação do dia-a-dia de personagens burguesas - como em seus primeiros filmes da fase da "nouvelle vague" a chegarem ao Brasil - "Cleo, das 5 às 7" (1962), "As Duas Faces da Felicidade" (Le Bonheuer, 1965) e "As Criaturas" (Les Creatures, 1966) - não deixa de ser surpreendente que Vardá vá tão fundo, agora, num filme de conotações sociais. A França que se vê em "Os Rejeitados" é de pessoas empobrecidas, miséria, desajustamento - sem qualquer presença do Estado em termos de ajuda. O mundo rural é mostrado sem toques poéticos - ao contrário, a vida dura de ex-contestador tendo que cuidar de bodes & cabras para garantir a sobrevivência da mulher e filho, os imigrantes com suas mãos sujas, o trabalho pesado. Neste universo há o conflito de Mona, em seu egoísmo juvenil, a busca de um (desconhecido) caminho. Em mãos menos capazes, "Sans Toit Ni Loi", produzido há 5 anos (sua primeira exibição no Brasil foi durante o III FestRio, na mostra "Um Olhar Feminino"), seria um filme cansativo. Agnes Vardá, sem concessões, faz com que a seriedade de proposta chegue ao espectador, que deixa o cinema certo de que viu um filme digno - e que conheceu, na personagem central, uma das melhores revelações do cinema europeu nestes últimos anos, a excelente Sandrine Bonnaire, como Mona.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
11/07/1990

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