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Aramis

Airto & Flora, simplesmente um love story

Durante 4 anos uma brasileira esteve em primeiro lugar na relação das melhores cantoras do jazz no respeitado Jazz Poll da revista Down Beat: Flora Purim. Em apenas seis anos nos Estados Unidos, esta carioca conseguia chegar ao top musical, ocupando um espaço até então privativo de monstros sagrados como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Carmen McRae entre outras. Com 15 elepês como solista, participação em dezenas de outros, sua voz em filmes como "Apocalypse Now", "Sharky's Machine" e o francês "Les Biches", aplaudida sempre por milhares de pessoas em grandes teatros, ginásios, estádios e até numa praça de touros em Lisboa, Flora é uma superstar da canção. Ao seu lado, sempre, o companheiro de 20 anos de estradas - Airto Moreira, 45 anos, catarinense de Itaiópolis, infância passada em Ponta Grossa e adolescência em Curitiba. O homem que elevou a percussão ao grande nível artístico nos Estados Unidos, ao ponto de "Down Beat" - a revista-bíblia da música contemporânea - ter criado esta categoria em seu "Jazz Poll", e na qual, por 10 anos, ele é o number one. Durante 18 anos Flora permaneceu nos Estados Unidos, impedida de retornar ao Brasil devido a problemas legais - condenada num processo por envolvimento com drogas, em 1976, se deixasse o país não poderia voltar. Hoje, aos 44 anos, madura, feliz e realizada, ao lado da bela filha, Diana, 14 anos, e do marido Airto, Flora vem fazendo shows em todo o mundo, em agenda das mais movimentadas. No Brasil, há 10 dias, junto com o grupo Steps of Imagination (no qual está o curitibano Celso Alberti, na bateria), já se apresentaram em São Paulo, na próxima terça-feira, 26, fazem um único show no auditório Bento Munhoz da Rocha Neto, em Curitiba e, depois, quatro dias no Canecão, no Rio. Três festivais do jazz internacionail os aguardam no Exterior - inclusive o de Berlim, dentro de um apertado roteiro de apresentações. Domingo passado, quando estiveram, incognitamente, em Curitiba revendo seus familiares em Curitiba - dona Zelinda, mãe de Airto, a irmã Odene, os sobrinhos Jefferson e Emerson, Airto e Flora gravaram uma entrevista-depoimento exclusiva, no ambiente descontraído do estúdio Vinícius de Moraes. Desta conversa amiga extraímos os melhores trechos para esta página. Aramis Millarch - Flora, qual é a sensação de voltar ao Brasil, após 18 anos de Estados Unidos? Flora - Quando o avião estava pousando no Galeão, o meu coração batia tão forte que eu pensava que os outros passageiros estavam até ouvindo o seu som. Eu dizia a mim mesma: quero ser forte! Jurei que não ia chorar. Mas chorei mais de dez vezes desde que cheguei ao Brasil há 10 dias. Aramis - Você é uma mulher forte em todos os planos. E o Airto também tem muita energia. Como é que a relação de vocês resiste há mais de 20 anos, sendo ambos artistas e, de certa forma, competidores? Flora - Competição propriamente nunca houve. Mas o Airto durante anos nunca me disse uma palavra de elogio após os meus shows. Um dia eu cobrei isto dele e a resposta foi imediata: "O dia em que você cantar bem eu te falo!" Airto Moreira (entrando na conversa) - Não é o fato de cantar bem. É uma naturalidade que vem da confiança que a pessoa tem em si mesma. Há uma diferença entre o nervosismo e a excitação antes de entrar num show. É questão de um auto-controle individual. E hoje Flora tem este controle, esta confiança plena. Flora - É verdade. Levei mais de dez anos para adquirir esta confiança. Trabalhei com muitos músicos americanos, os melhores. Eu sempre via o Airto após os shows, suando, até ensangüentado, dando a máxima energia em suas apresentações e eu ficava até envergonhada de não ter o mesmo pique. Daí eu entendi o que ele queria dizer. Que, basicamente é não deixar a peteca cair não importa o que se esteja sentindo no momento. É importante ter fé. Eu queria tanto ser cantora, mas tanto... que virei cantora. Aramis - Como é que uma brasileira, desconhecida, conseguiu chegar ao primeiro lugar no Jazz Poll da "Down Beat", como melhor cantora - derrubando monstros sagrados como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Anita O'Day e tantas outras? Flora - O que aconteceu foi que eu estava mais em contato com o novo jazz. Houve uma mudança na direção do jazz, do bebop. O jazz de Chick Correa era o novo. E, para falar a verdade, Chick (NR: um dos mais importantes pianistas e compositores americanos, surgido nos anos 70) me falou que havia mandado suas músicas para cantoras como Ella, (Fitzgerald), Sarah (Vaughan), Carmen McReae e todas devolveram, dizendo que não era o estilo delas. Então Chick decidiu chamar alguém novo, desconhecido, mas capaz de interpretar suas músicas, trabalhando juntos. E o fato de eu estar aberta a me adaptar ao seu estilo - o que não foi fácil - foi que me abriu as portas. Chick havia deixado o grupo de Miles Davis e na verdade procurava uma cantora diferente. Telefonou-me e disse que tinha duas músicas novas - "Five Hundred Miles High" e "You are everything", que, disse, tinha escrito comigo na cabeça. Mas as outras músicas ele havia oferecido, antes, para outras cantoras. As músicas não tinham letra: eu era antes de tudo uma vocalista, experimentando o som. "Light as a Feather" (grande sucesso de Flora, em parceria com o baixista Stanley Clarck) nasceu assim, numa integração instrumental e vocal. Airto - As músicas de Chick Correa eram novas, difíceis. Algo totalmente inédito, basicamente instrumental no qual a cantora tinha que cantar como um instrumento. Aramis - Então, Flora, você levou o scat (canto sem letra) a uma nova dimensão? Flora - Exatamente. Foi isto que marcou pontos com os críticos. Eu passei a ser uma estilista, sem imitar ninguém. Apesar de toda minha admiração por cantoras como Billie Holliday, Dinah Washington, Ma Rainey e Ella Fitzgerald, que gosto demais, até hoje, parece uma menina cantando... Aramis - Para uma carioca, que cresceu ouvindo jazz, mas que não imaginava um dia substituir Ella Fitzgerald como melhor cantora nos Estados Unidos, qual foi a sensação? Flora - Vou te contar! Eu achei estranho. O jazz é a música ameriana. Foi o equivalente a Ella vir ao Rio e vencer o concurso para escolha do samba-enredo da Mangueira. Aramis - E como era o convívio com os músicos americanos no início? Flora - Sempre foi maravilhoso. Eles nos recebiam em suas casas com o maior carinho. Uma noite eu passei mais de dez horas tocando violão e cantando uma única música par Tholonius Monk (NR: pianista e compositor, renovador na escola do bebop) - "Razão de Viver", de Eumir Deodato. Eu tocava e ele ficava olhando, sem dizer nada. Ou melhor, só pedindo: "Canta de novo..." Aramis - Os americanos estavam acostumados com a Bossa Nova cantada por Astrud Gilberto, voz feminina. Como você se saiu? Flora - Bom, eu comecei cantando Bossa Nova, ainda em 1963, no Bêco das Garrafas (NR: local onde se concentravam pequenas boates, nas quais a BN começou). Entretanto o Airto me desafiava sempre: ele queria uma cantora com raça, capaz de interpretar as suas músicas. O som que ele faz não tem nada em relação à Bossa Nova. A música que Airto sempre fez foi forte, dinâmica de raça. Airto - A música que fazemos tem um só nome: a música de Airto e da Flora (risos). Flora - Eu funciono muito na base do ritmo, o tempo todo. Uma ponte entre o músico e a platéia. Sinto-me mais um instrumento do que uma cantora, inclusive eu tenho dificuldades com a letra - pois às vezes ela não me completa. Eu só escolho coisas que podem dar o recado. Eu gosto do difícil. É como uma linha de passe. A gente está com o time no campo e tem que fazer gols. Aramis - E o famoso filme sobre a Flora e o Airto? Flora - Bem, lá por 1978, houve interesse da CBS em fazer um filme sobre nossas vidas. Entretanto, quando me apresentaram o pré-roteiro eu não gostei: achei que estava muito down (negativo). Eu disse: "Não, o filme tem que ser positivo". Eu sei que a Billie Holliday se deu mal, outras pessoas se deram mal com drogas, mas comigo é diferente. Eu me dei mal, cai, mas levantei, sacudi a poeira e estou aqui de novo. Eu acho que a mensagem tem que ser positiva. Se você caiu, não desanime: levante e vá em frente. Mas eles queriam forçar uma visão diferente, incluindo minha filha Diana, como uma vítima da sociedade. Então eu falei: não. Eu estava no lugar errado, fazendo a coisa errada, no dia errado e então sobrou pra mim. Eu assumo isto. De lá pra cá muita coisa mudou, eu mudei muito. Eu acredito em Deus. Se eu cheguei a ir até este ponto é porque Deus queria que eu aprendesse alguma coisa. E eu aprendi. Eu estou aqui. Hoje, eu estou na melhor época de minha vida. Chegaram a ser feitos três pré-roteiros do filme mas o projeto não andou. Eles perderam a opção de realizar o filme e eu recuperei os direitos. Aramis - E como apareceu o diretor Bob Rafolson na jogada par fazer o filme? Flora - Ele quer fazer o filme com uma condição. Que pelo menos a terça parte do mesmo seja rodada no Brasil. Por isto, uma equipe vem ao Brasil, nesta semana, para conversar com nossos parentes - dona Zelinda (NR: mãe de Airto), minha mãe, Rachel, nossos amigos. Eles estão reunindo elementos para um roteiro definitivo do filme. Rafelson é um diretor sério, autor de filmes como "O Destino Bate à Sua Porta". Mas eu não o conheço ainda pessoalmente. Aliás, tudo começou porque um cidadão chamado Lou Adler, interessado em promover a Sonia Braga imaginou um filme chamado "Samba". Contrataram Rafelson para realizá-lo e ele esteve três vezes no Brasil. O projeto entretanto, não foi para a frente e ele, apaixonado pelo Brasil, pensou então em fazer o filme baseado em minha vida. Agora os roteirstas começam a pensar nos personagens-base do filme, como o Hermeto (Paschoal, músico, ex-companheiro de Airto no Quarteto Novo), o Lennie Dalle e outros que marcaram nossas vidas. O filme não será uma cinebiografia sobre Flora e Airto, mas um filme "inspirado" em nossas vidas. O roteiro é de um poeta negro, muito respeitado nos Estados Unidos, o Al Young, com vários livros já publicados. Uma coisa está decidida: o filme será antes de tudo uma história de amor. E nossa vida tem sido uma love story, mesmo com todos os percalços, brigas e problemas. Se assim não fosse, não resistiria há 20 anos... Aramis - Em toda entrevista, sempre há, é claro, perguntas sobre a prisão, devido ao envolvimento com drogas. Isto a irrita? Flora - Não. Eu acho que aquilo que aconteceu comigo pode até servir de exemplo. Ninguém é invulnerável. Quando se é jovem, pensa-se que nada pode acontecer. Eu nunca fui traficante mas, por azar, eu estava num lugar errado. Inclusive, eu nunca usei drogas no Brasil. Se durante alguns anos quem não usava drogas era meio marginalizado, hoje em dia, nos Estados Unidos começa a se ver o contrário: os músicos (ao menos, os bons músicos), não usam drogas. Não é mais como antigamente, que a droga dava um status. Hoje, a droga está fora de moda. Afinal, a droga no início estimula mas depois deprime. E como a campanha antidrogas está tão forte que quem aprendeu não vai fazer de novo. Tantos perderam tudo por causa da droga. E quem se perdeu temporariamente e se recuperou, não quer voltar. Quer é saúde. Aramis - As canções que você compôs na prisão falavam em liberdade. Especialmente, o "Open Your Eyes. You Can Fly" ("Abra os seus olhos. Você pode voar")... Flora - A liberdade que eu falo, é especialmente, a liberdade interior. Aquela prisão que a gente mesmo põe a gente, que vem das inseguranças, do medo de não ser aceito pelas pessoas. A própria "Open Your Eyes. You Can Fly" tem mais a ver com o que você pode ser dentro de você do que fora de você. Aramis - Esta música foi o teu maior sucesso? Flora - Não. "Light As A Feather" foi o meu maior êxito. "Five Hundred Miles" também é um clássico dentro de meu repertório. Aramis - "Light As A Feather" é também uma música de liberdade... Flora - Sim, mas isto aconteceu da queda. Ela nasceu enquanto eu aguardava o julgamento, quando descobri alguns bons amigos. Que me inspiraram no tema, onde eu digo "Dias claros/ Eu me sinto tão bem/ sou livre". Eu, reconheci que aquela liberdade que eu tinha - e desconhecia, até eu perdê-la - voltou para mim. Eu tinha que celebrar aquilo. Aramis - Você é uma pessoa espiritualista, de muita fé, não é? Flora - Hoje mais do que nunca. O dia que eu perder o espírito que me acompanha, eu não serei nada. Eu sinto isto, uma profunda espiritualidade. É difícil descrever isto. A gente sente, antes de tudo. A inspiração é uma influência mediúnica. É uma mensagem. No espiritismo não há mentira. Ninguém pode mentir. É verdade. Aramis - Vocês têm trabalhado muito, com excursões por vários países. O que explica tanto interesse pelo trabalho musical que apresentam? Airto - Estamos com nossas agendas preenchidas até março de 1987. É difícil até entender esta incrível demanda pelos nossos shows. Acho que o conjunto Steps of Imagination trouxe muita força ao nosso trabalho. Flora - Ah! O Celso (Alberti, baterista, curitibano) está tocando demais. É um excelente músico. Aliás, os músicos de Curitiba estão se dando bem: o Carlos (Oliva, o "Polaco", guitarrista, morando em Los Angeles) e o Christian, um garotinho - nem sei o seu sobrenome, também está indo bem. Aramis - O Celso Alberti já está com o grupo há tempos... Flora - Ele já está há um ano com a gente. Airto - O Marcos (Silva, pianista e arranjador do grupo) trouxe ele para o grupo. E realmente é muito bom. Aramis - Você volta 18 anos depois. Aliás, lembra-se de quando você foi para os Estados Unidos? Flora - Nem poderia esquecer. 18 de dezembro de 1968. Véspera de Natal. Sozinha, naquele frio. Jamais iria esquecer. E uma coincidência: quando fui libertada da prisão, também foi num 18 de dezembro, em 1976. Ou seja, aquela data voltou para mim de outra maneira. Aramis - E o Airto viajou para Nova Iorque logo depois de tua partida. Flora - É. Um mês depois. Aramis - Uma história de amor! Airto - Sim. Continua sendo. Hoje, mais amadurecidos, a gente tem mais compreensão e aceitação um pelo outro. Acho que agora é mais definitivo do que nunca. Aramis - E há uma nova artista na família, Diana... Flora - Ah! Você tem que ouvir a Diana (NR: filha do casal, 14 anos completados no último dia 15 de agosto). Sem corujismo: ela arrasa quando canta. Melhor do que nós dois juntos. Geração hoje. Toca sintetizador, canta... Aramis - Agora que se apresentam juntos no Brasil, pela primeira vez, qual é a sensação de retornarem como superstars da música. Flora - (rindo) Não. Eu não me sinto uma superstar, como estrela do mundo. Eu me sinto como uma ponte para os jovens. Valeu a pena passar a barra para chegar aqui e sentir o que estou sentindo. Acho que tenho uma missão, senão Deus não iria me dar as oportunidades que estou tendo. Por isto acho que a Flora Purim de hoje tem uma responsabilidade muito grande, pois sabendo de como a gente atinge as pessoas - o repertório, a música, a maneira como eu vivo, tudo isto - eu tenho que cuidar muito para que seja sempre reto, de acordo com o que eu considero certo. Eu me sinto guiada por Deus e penso que minha mensagem é positiva.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
5
24/08/1986

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