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Allen, a psicanálise urbana contemporânea

O que faz de Woody Allen um sucesso ? A pergunta procede: judeu nova-iorquino, este diretor, roteirista, ator e até desenhista de 45 anos, 11 de cinema como realizador de seus próprios filmes, vem construindo uma obra extremamente pessoal, chegando à catarse, mas que, cada vez mais, estabelece uma empatia com faixas significativas de público - deixando de ser apreciado apenas por uma minoria de curtidores do cinema mais intelectualizado para se tornar objeto de consumo de um público que garante expressivas bilheterias a seus filmes. "Manhattan" (cine Astor, 2ª semana), não é só o seu melhor filme, como, de certa forma, representa - a exemplo do que faz o italiano Fellini ou o sueco Ingmar Bergman (de quem Allen é um dos maiores admiradores) - mais uma realização extremamente pessoal, declaradamente autobiográfica, sinceramente assumida. Woody Allen, pode ser apreciado e admirado de muitas maneiras - inclusive como comediante, pois aos 17 anos, já escrevia shows para a televisão americana e o seu espírito arguto, profundo, inteligentíssimo, está presente em toda a sua obra. "Manhattan", estreado em princípios de 1979, nos Estados Unidos - e já candidato a ser nominado em algumas categorias do Oscar, da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, forma, ao lado de suas duas fitas anteriores - "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" (Annie Hall, 1976) e "Interiores" (Interiors, 1977), uma trilogia que mostra o artista em pleno amadurecimento. Fellini, 60 anos, 30 de cinema, nunca abriu mão de uma extraordinária colocação pessoal, autobiográfica em suas fitas - assim conseguindo realizar as sua obras mais importantes - como "Abismo de Um Sonho" (52, reminiscências da época em que escrevia fotonovelas), "Os Boas Vidas" (53, recordações de Remini, sua cidade natal), "A Doce Vida" (59, sua visão de repórter da Roma sofisticada e socialmente falsa), "Oito e Meio" (63, seus conflitos e angústia de cineasta), "Julieta dos Espíritos" (65, contradições e crises com a esposa Giuleta Massina) até chegar a obra-prima "Amacord" (1974) - sem contar referências ocasionais, da sensibilidade para com os deserdados da sorte ("A Trapaça", 55), os saltimbancos ("Na Estrada da Vida", 54; o inédito no Brasil "Os Palhaços", 70). Nesta identidade-identificação de transpor na tela a sua vivência, os seus medos, os seus sonhos, Fellini se transformou no mais importante cineasta italiano de nossa época. Igualmente, de um outro prisma, mas com idêntica honestidade/ sinceridade, o nórdico Ingmar Bergman, 62 anos, 35 de cinema, vem realizando uma verdadeira auto-análise em toda sua obra, aparentemente difícil, complexa - mas que, na proporção em que vai envelhecendo/ amadurecendo, começa a se abrir, a clarear - chegando à visão política, como no recente "O Ovo da Serpente", ou na identidade familiar, no aguardado "Sonata de Outono" (1978) - com estréia prevista para as próximas semanas. A citação de Fellini e Bergman, lembrando alguns títulos de suas filmografias, é, em nosso ponto de vista, importante, ao se tentar expor porque Woody Allen atinge agora, em seu oitavo longa-metragem, como diretor-roteirista-ator, uma maturidade extraordinária. No premiadíssimo (Oscar de melhor filme, diretor e atriz) "Annie Hall", Allen já se colocava em seus próprios conflitos e indagações - o intelectual judeu-nova-iorquino, em permanente questionamento pessoal e afetivo - no caso dividindo-se inclusive geograficamente, "Interiores" (Interiors) - que sábado, à meia-noite, oportunamente, será exibido no Astor - foi um intermezzo: pela primeira vez, Allen quis apenas ser o diretor e roteirista, proibindo inclusive a United Artists a divulgar qualquer fotografia de sua pessoa para promover o filme. A mais bergmaniana homenagem que se poderia prestar, "Interiores" foi, em nosso entender, um dos mais belos filmes dos anos 70 - ocupando o segundo lugar na lista dos 10 melhores lançamentos de 1979, em Curitiba, que divulgamos no suplemento "Fim-de-Semana", na última sexta-feira. Uma crônica de uma família classe média americana, nos conflitos dos diversos personagens, o filme de Allen provou, a quem ainda tinha dúvidas, de sua extraordinária competência como diretor, sensibilidade e profundidade de roteirista, capaz de, a melhor maneira de Bergman, mergulhar no mais profundo do ser humano e, em imagens belíssimas - na primorosa fotografia de Gordon Wilis, em cores perfeitamente controladas, passar todo um clima de medo, angústia, conflitos - mas visto com extrema consciência. "Manhattan", fotografado em cores pelo mesmo Gordon Wilis (um profissional na melhor linha dos grandes mestres da câmara: James Wong Howe, Sven Nvenski e Haskel Wexler, para só ficar em 3 exemplos), mas copiado em preto-e-branco, de certa forma retoma o "Annie Hall". Novamente Allen é o intelectual confuso, sensível, criativo e, [profundamente] emotivo: seu Issac Davis, um roteirista de programas de humor de tv, é ele próprio, aos 45 anos, 2 ex-casamentos, um envolvimento com uma adolescente de 17 anos, Tracy (Mariel Hemingway) e, subitamente, uma paixão pela amante (Mary Wilke/ Diane Keaton) de seu melhor amigo, Yale (Michael Murphy). A ação é em Manhattan, a cidade amada de Woody Allen, que, há 2 anos, se recusou a voar a Los Angeles, quando "Annie Hall" foi premiada com vários Oscars, sob alegação de que naquela noite (uma segunda-feira, abril/78), tinha que tocar clarineta num pequeno clube de jazz da rua 23. A cidade - em seu espaço urbanístico, seus prédios, o Museu de Arte Moderna, as ruas, o Central Park - se integra dentro da história. Da primeira a última cena, Allen/ Isaac Davs, trata a ilha de Manhattan (Nova Iorque), como uma cúmplice, uma amante - fascinantemente bela e perigosa, que ele só imagina em preto-e-branco (a cor do real) e ao som da música de George Gershwin (1898 - 1937 - um dos cinco gênios da música americana - e de todo o mundo. Do "Concerto em Fá", na [seqüência] de abertura, à "Rapsody In Blue", no encerramento, "Manhattan" é a mais bela sinfonia de amor que alguém já tributou a Nova Iorque. Só me ocorre "Amor Sublime Amor" (West Side Story, 61, de Robert Wise/ Jerome Robbins), como outro momento tão significativamente marcante na relação de um filme utilizar o decor de uma cidade, como elemento integrado à ação. Só que ao contrário do musical de Leonard Bernstein/ Stephen Sondhein - até hoje, um clássico no gênero - "Manhattan" não permanece numa distância irreal, alienada, quase mágica: os personagens que Allen cria, apesar de tão regionais, em sua cultura, em seu ambiente - transpõem as fronteiras geográficas e aproximam-se de qualquer pessoa de sensibilidade, capaz de saber ver na tela, algo mais do que uma simples comédia (que não o é) ou filme de amor ou comportamento (também não). Ao contrário a universalidade de Allen - como de Fellini ou Bergman, por ele citado em alguns diálogos - está em que, ao colocar os seus conflitos, as suas neuroses, os seus amores (& desamores) na tela, estabelece o encontro com homens (e mulheres) de todas as partes, como se fixasse uma legenda dizendo "não estamos sós". A psicanálise da sociedade contemporânea - em sua violência, em seu desespero, em seu desamor - tem em seres iluminados como Allen, sem dúvida, extraordinários refletores. Se observarmos sua carreira de roteirista, do surrealista "O Que é Que Há Gatinha?" ao consciente trabalho de ator no corajoso "Testa de Ferro Por Acaso" (The Front, 76, de Martin Ritt) - a primeira e séria denúncia cinematográfica do macartismo - veremos que, independente de suas neuroses e angústias, Allen sempre foi um homem consciente. De sua primeira comédia, como diretor ("Um Assaltante Bem Trapalhão/ Take the Money and Run", 69) a pequena obra-prima que foi o episódio onde interpretava um espermatozóide em "Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre o Sexo" (1972), passando por "Bananas" (71) - uma visão satírica do caudilhismo latino-americano, à ficção-científica ("O Dorminhoco", 74) ou a admiração por Tolstoi ("A Última Noite de Boris Grushenko", 75), veremos um homem que, a cada momento, a cada ano, se questiona - e fez de suas dúvidas, uma terapia - não só a si, mas a muitos que como ele, são capazes de sentir a coragem de assumir (e correr) os riscos de uma honestidade pessoal pública. Assim como muitos podem ver "Apocalypse" (Cine Plaza) apenas como um filme de guerra, é natural que muitos pensem em "Manhattan" apenas como um filme-entretenimento. Pessoalmente, "Manhattan" é duas horas da melhor - e mais econômica - psicanálise que se pode fazer.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
6
10/01/1980

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