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Aramis

Chovia lá fora mas Carolina e Fafá faziam a magia da música

Foi daqueles momentos encantados que ficarão sempre na memória. Dia 6 de março de 1986, Rio de Janeiro, IV Encontro dos Pesquisadores de Música Popular Brasileira, realizado no auditório do Museu Nacional de Belas Artes. Hermínio Bello de Carvalho, diretor da divisão de MPB do Instituto Nacional de Música e grande artífice do encontro dos que pensam e se preocupam com a memória musical, programou um espetáculo com grandes nomes dos anos de ouro de nossa música - pessoas maravilhosas, em plena forma, mas que na cruel máquina artística brasileira são esquecidas. Entre as convidadas, Carolina Cardoso de Menezes. Uma emoção! Assistir e conhecer aquela pianista identificada com a nossa música desde o final da década de 20, quando participou da histórica gravação do samba "Na Pavuna" (Almirante / Homero Dornelos) com o Bando dos Tangarás! Carolina Cardoso de Menezes que gravou senão o primeiro, um dos três primeiros elepês feitos no Brasil. A pianista dos programas da Rádio Nacional. Carolina, elegante, com a classe de grande dama, foi um dos pontos altos daquele concerto no final da tarde - que tirou lágrimas dos olhos que ali estiveram. Está aí o professor Alceu Schwaab - que ao lado do inesquecível Luciano Lacerda, assistiu emocionado, na primeira fila - que não me deixa mentir. xxx Depois do espetáculo, o bom amigo Jairo Severiano, produtor do que de melhor se tem feito em resgate de nosso tesouro musical, convidava a mim e ao Zuza Homem de Mello para, a noite, comparecermos ao apartamento de Carolina, "para conversar tranqüilamente". Produzindo o álbum "Os Pianeiros" para a Federação das Associações Atléticas do Banco do Brasil, que há anos vem preservando grandes momentos musicais em discos idealizados por Silas Xavier, Jairo havia se tornado amigo de Carolina, convidada para gravar uma faixa do álbum - mas que, por seu entusiasmo e enriquecimento musical, acabou fazendo nada menos que cinco registros ("Odeon", "Mulher", "Sete Coroas", "O Maxixe" e "Tempos que Foram"). Às 19h30, Zuza e Hercíla, eu e Marilene, saímos do hotel e fomos para Copacabana, no endereço de Carolina, que veio nos buscar na porta. Quando subíamos no elevador, meio tímida, ela nos disse: - "Eu tenho uma surpresa: convidei o Fafá para vir também ao jantar!" Nova emoção: Fafá Lemos, primeiro grande violinista da música popular, que desde 1961 residia nos Estados Unidos - mas que desde a década de 30 está ligado a nossa MPB - havia retornado definitivamente, mas o ato passara despercebido mesmo junto a imprensa mais especializada. Assim a emoção foi maior - de uma só vez, reunir-se com duas personalidades maiores de nossa música. No apartamento de Carolina - decorado de forma clássica, bonitas telas nas paredes, confortáveis poltronas e muitas samambaias - já se encontravam Jairo e o pesquisador e crítico Ary Vasconcelos. Fafá, simpaticíssimo, logo foi contando que havia voltado ao Brasil "antes que minha ex-mulher me tomasse tudo que ganhei em minha vida de trabalho nos EUA". Casado com uma americana, na hora do divórcio, ela fez tantas exigências descabidas que o violinista resolveu "fugir" de sua ganância e retornar ao Brasil. Planos de trabalho? Não tinha muitos. Mostrava-se meio decepcionado com o panorama musical, sem maior respaldo pela música que sempre gostou de tocar. Uma conversa descompromissada e um delicioso jantar - preparado pela própria Carolina - servido enquanto um temporal caís sobre o Rio de Janeiro. Daqueles de derrubar favelas e inundar a cidade. Só que não deu para dar importância à tempestade. Após o jantar, Carolina foi ao piano, Fafá tirou o violino do estojo e juntos começaram um recital exclusivo, que se estenderia por mais de duas horas. Felicidade. Prudentemente, havia levado meu "National", fitas e pilhas de reserva - que possibilitaram a gravação de toda aquela exclusiva, inédita e especial audição - para apenas seis espectadores. Impossível descrever a emoção de Carolina nos teclados, Fafá no violino - percorrendo todo um repertório, Carolina mostrando composições de seu pai, o pianista e compositor Oswaldo Cardoso de Menezes (1893-1935), que integrou ranchos e associações carnavalescas, músico desde os 14 anos e que a partir de 1912, esteve ligado a Kananga do Japão, rancho ao qual o compositor Sinhô também esteve vinculado (o mesmo nome da famosa gafieira, tema agora da telenovela da TV Manchete). Sem nunca ter gravado ou tocado em rádio, Oswaldo Menezes deixou centenas de composições, especialmente chorinhos, que Carolina nos mostrou junto com suas próprias composições - sambas, choros, xotes e baiões, entre os quais "Aquela Rosa que Você me Deu", "Ausência", "Era tão Lindo o meu Amor", "Esquina da Vida", "Nós Dois", "Nosso Mal", "Pombo Correio", "Preludiando" e, especialmente, "Tudo Cabe num Beijo" de 1938 - parceria com Oswaldo Santiago (1902-1976), prefixo de seu programa na Rádio Nacional. Fafá Lemos também mostrou composições suas - ele que sempre foi mais intérprete do que autor, grande parte inéditas mesmo para os ouvidos experimentados como os dos pesquisadores Zuza, Jairo Severiano e Ary Vasconcelos. Lá fora, raios e trovões. No apartamento de Carolina, um clima de encantamento: ela ao piano, Fafá no violino - uma sonoridade total. As horas passaram rápidas e a emoção daqueles momentos especiais, um presente impossível de descrever, fez com que só ao descermos, sentíssemos o problema da chuva. Ruas alagadas, centenas de pessoas tentando conseguir um táxi. Como voltar ao hotel? Mas o clima mágico, o bom astral valeu. Surgiu um iluminado táxi, que nos conduziu de volta ao hotel. Zuza, em estado de graça pela belíssima noitada musical, disse: - "Você gravou este encontro. Mas um dia eu vou fazer um disco com Carolina e Fafá para que todos possam conhecer este mágico duo - que nunca se apresentou junto. xxx Agora, três anos depois, Zuza cumpre a promessa: há mais ou menos um mês saiu pelo Estúdio Eldorado o álbum "Fafá & Carolina.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
02/06/1989

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