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Aramis

Cinema & realidade (I): a coragem de uma mulher

"O mal brota quando os bons não agem" (frase citada pelo personagem Kevin McCormack em "Marie - A True Story"). xxx É uma pena que a sala de projeção do Palácio Iguaçu não esteja funcionando. Pois se o futuro governador Álvaro Dias fosse, como um de seus antecessores (Haroldo Leon Peres) entusiasta em usar esta mordomia para assistir, tranqüilamente, bons filmes, uma obra que justificaria sua projeção não só para Álvaro mas também para vários de seus secretários seria "Maria - Uma História Verdadeira" (Cinema I, hoje último dia em projeção, sessões às 15 e 20h30min). Este filme baseado em fatos reais, ocorridos há menos de dez anos no Estado do Tennessee, entra naquela categoria de cinema que vale pela honestidade, sinceridade e, especialmente atualidade do que apresenta. Não se trata de um filme com montagens inovadoras, narrativa dinâmica ou grandes elementos independentes. Ao contrário, é um filme convencional, quadrado até em sua concepção mas que tem algo de muito importante: a coragem de denunciar fatos que se aconteceram no Tennessee podem estar repetindo-se em outros tantos Estados - não só nos EUA como em qualquer outro país do mundo. xxx É um filme também sobre a coragem e honestidade de uma mulher. Marie Ragghianti, aos 22 anos, é maltratada por seu marido e abandona-o, indo viver com seus três filhos em Nashville, onde mora com sua mãe, paralítica. Trabalha duramente como garçonete e volta a estudar, graduando-se em Filosofia e Inglês na Vanderbilt University. Ali conhece Eddie Sisk (Jeff Daniels) um ambicioso advogado que com a eleição do novo governador do Estado, Ray Blanton (Don Vood), assume o cargo do Procurador Geral. Eddie nomeia Marie para o setor de extradições estaduais, e em 1976, por sua competência, torna-se a primeira mulher do Conselho Superior de Indultos e Livramentos Condicionais do Tennessee. Em 12 anos, Marie alcança uma posição de destaque, remuneração anual de US$ 24 mil e prestígio. Entretanto, ela começa a perceber que irregularidades graves ocorrem em relação a concessão de indultos e liberdades condicionais. Corrupção envolvendo altos escalões do governo. Ela decide denunciar os fatos ao governador Blanton mas acontece com ela o mesmo que tantos outros honestas e idealistas servidores públicos sofreram em tantos países: demitida e perseguida, fica em situação de acusada. Um amigo leal, apaixonado, Kevin McCormack (Keith Szarabaja) é vítima por se dispor a ajudá-la e só com a coragem de um advogado honesto e independente, Fred Thompson (o próprio advogado nos fatos reais) é que consegue chegar à justiça para denunciar a corrupção e recuperar a sua posição. No final, informações adicionais indicam que, neste caso, houve justiça, com a punição dos culpados. Mas se Marie Ragghianti conseguiu fazer o bem prevalecer sobre o mal, quantos outros fatos mais ou menos semelhantes tiveram final diferente? - "Marie" é um filme admirável pela precisão de roteiro - claro e objetivo, capaz de situar ação e personagens em poucas imagens - e a direção competente de Roger Donaldson, cineasta australiano em seu segundo longa-metragem nos Estados Unidos (anteriormente fez "Rebelião em Alto Mar", uma refilmagem de "O Grande Motim" no qual procurou dar uma versão mais realista ao clássico romance). O espectador se identifica com Marie, em sua simplicidade, suas atribuições de donas de casa, que exploram desde o problema com seu mais novo (Robert Benson III, admirável ator infantil), que engolindo uma casca de noz conduz a cenas de angústia familiar. Uma mulher que sem temer perder uma tranqüilidade material, recusa-se a fazer vistas grossas (como esperam seus patrões) às irregularidades administrativas e às ligações entre o governo e o crime organizado. Há uma preocupação de deixar claro, em todos os momentos, de que a história é verídica e que os fatos mostrados ocorreram faz poucos anos. O autor do romance roteirizado por John Briley é Peter Mass, o mesmo que contou a história de outro funcionário público exemplar, Sérpico, que se dispôs a denunciar o crime organizado dentro da polícia civil de Nova Iorque - o que obrigou a exilar-se na Suíça (história filmada há 8 anos por Sidney Lumet, com Al Pacino como o personagem Sérpico). xxx Sissy Spacek - já galhardeada com o Oscar de melhor atriz (por "O Destino Eue Deus Me Deu") é a intérprete perfeita para a personagem Marie: a mulher frágil e com cara de todo mundo, necessitando de uma vida mais fácil quanto qualquer pessoa, decide dizer não, brigar. Como tão bem acentuou Edmar Pereira ("Jornal da Tarde", 18/9/86), sem discursos e nem super-heróis, Marie oferece uma comovente lição de cidadania, um cristalino exemplo de como o heroísmo só faz sentido quando promovido entre os indivíduos. Marie aposta nas possibilidades da vitória das civilizações, da sociedade organizada, da informação correndo livremente entre os cidadãos. xxx Filmes como "Marie - Uma História Verdadeira" cumprem uma função de real utilidade pública. Denunciam corrupções e o jogo do poder - que se repete em todos os países, e crescem quando os bons não reagem - como tão bem repete o humano personagem Kevin McCormack em várias seqüências. Ver "Marie" é obrigação de quem se interessa pelo cinema atual, pulsante e corajoso. Pena que, mais uma vez, um filme desta dimensão tenha sua carreira interrompida após apenas 16 projeções.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
17
11/03/1987

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