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Aramis

Era uma vez Karam & Urubu (II)

Se entre as muitas funções/finalidades do teatro, que o faz a mais antiga, viva e completa das artes, está o sentido de que o dramaturgo é, antes de tudo, um repórter de seu tempo e, sobretudo, dos homens, sentimentos & pensamento, é difícil, movediço mesmo, tentar estabelecer comparações sobre o que é mais importante e o que é melhor ser feito/visto/discutido em cada momento. Afinal, cada obra tem o seu significado, o seu sentido e é necessário a qualquer espectador lúcido procurar entender mais do que aquilo simplesmente que está no palco, durante o espaço de tempo de duração do espetáculo. Uma consideração desta natureza, mais apropriada a uma (tentativa de) ensaio do que a um registro jornalístico, justifica-se, cremos, para explicar os nossos eventuais leitores porque [julgamos] que peças apresentadas recentemente no mesmo Paiol, como "Apareceu à Margarida" de Roberto Athayde e "Se Chovesse Vocês Estragavam Todos" de Clóvis Levy, em seus enfoques do Poder (embora restritas, ambas, as relações professora-aluno) foram momentos dos mais significativos, capazes de [tirar] o espectador da sonolente condição de receptador-fantoche participando, ao menos em raciocínio, das idéias/propostas de cada espetáculo. Já um texto como "Muro de Arrimo" do paulista Carlos Queiros Telles, que José Maria Santos produziu, dirigiu e vem apresentando neste semestre (após temporada no Paiol, tem previstas novas encenações no Guaíra e em cidades do Interior), em sua simplicidade, também possui grandeza de idéias superiores a tantas supérfluas superproduções que vem se tentando impor ao público brasileiro, como entretenimentos anestésicos. Assim, a (in) formação teatral, a consciência e lucidez para saber apreciar um espetáculo enriquece, cada vez mais, o espectador ao assistir uma peça - por mais defeitos e imperfeições que contenha, desde que realizada com honestidade e, principalmente, buscando os sentimentos do homem em relação ao seu meio, o que, em decorrência, traz como síntese a temática do poder. Se peças escritas há milhares de anos, como as tragédias gregas de Ésquilo (525/456 a.C.), Eurípides (entre 485-460, a.C.), ou Sófocles (496-406, a.C.), permanecem hoje, tão atuais e emocionantes - como toda a obra de William Shakespeare (1564-1616), é porque, intrinsecamente, as pessoas não mudaram em si, em seus sentimentos, em seus defeitos e virtudes. Portanto, louve-se sempre quando autores brasileiros que mesmo sem ter a genialidade dos clássicos gregos ou do bardo de Stratford-on Avon, têm consciência de abandonar o sucesso fácil, a badalação o tilintar das moedas, os elogios vazios das amenidades sociais e partirem para propor o estímulo ao raciocínio e a imaginação ao espectador. O jornalista Manoel Carlos Karam, é um autor de uma obra que até hoje sempre vimos com restrições, pelo hermetismo e mesmo fragilidade - o que nos permite, agora, independência suficiente, para elogiarmos o seu "Urubu" (teatro do Paiol, até o dia 8 de novembro, 21 horas). Repetimos: longe de a classificarmos de obra-prima, de pedirmos inscrição em seu fã-clube ou de dar o fácil elogio pela amizade ou coleguismo (o que seria, [inclusive], incoerente), buscamos apenas chamar atenção para a intenção honesta que teve de, talvez pela primeira vez, trabalhar mais de um ano sobre um texto, fugindo do espírito de improvisação, espiroqueta, que vinha marcando, até hoje, sua densa produção (mas o que é explicável por uma natural inquietude jovem). Deixando assim, bem claro, que o importante na montagem de "Urubu" é a tentativa de, em nossa cidade, se fazer uma peça-fábula com idéias lógicas, tratada de forma descontraída e, principalmente, num trabalho que se estimule o trabalho do grupo - digno de ser visto e discutido, independente de agradar ou não ao espectador. E, muito mais importante do que a montagem de envelhecidos textos de autores americanos, dirigidos por estrangeiros, que badalativamente são levados até o Exterior, a peça de Karam pode, muito bem, representar o nosso Estado no Projeto Mambembão, que o SNT está patrocinando para levar ao eixo Rio-São Paulo, espetáculos criados em todo o País. Por certo, a peça não terá elogios fáceis (assim como "Doce Primavera", em sua temporada, no TNC, há dois anos, mereceu sérias restrições), mas, representa, ao menos, uma tentativa de se tirar o nosso teatro do marasmo a que está mergulhado há tantos anos. De um lado, verdadeiros picaretas, em busca de gordas subvenções oficiais para produzir o que de pior e menos [conseqüente] existe; de outro, gente bem intencionada - e nisto nunca é demais repetir nomes como José Maria Santos, para só citar um exemplo, fazendo o que podem, dentro de suas limitações financeiras, tendo que mambebear pelo Interior a fora para garantir o feijão-com-arroz de sua numerosa família.. Do clássico "Urubu Rei" (Uru Roi), que o francês Alfred Jarry (1873-1907), estreou, por coincidência, há 90 anos passados, Karam, espertamente, extraiu apenas uma referência-piada, assim como faz rápidas (e quase imperceptíveis à maior parte do público) referências a Oswald de Andrade (1890-1954) e mesmo Shakespeare, autores que estão entre sues favoritos. Como ontem afirmamos, sendo "Urubu", sua 19ª peça encenada, a menos hermética e mais consciente, é apesar disto, um texto em que ainda se notam certos cacoetes e marcas irritantes de seu estilo. Mas, perfeitamente compreensíveis: aos 31 anos, com toda uma vida pela frente, não seria agora, já, que faria sua obra definitiva. O salto que deu em relação a um passado de dramaturgia que pode até rudemente ser classificado de irresponsável (embora importante a ele) já é dos mais significativos, e nos faz, aqui, de público, recomendarmos o seu espetáculo. "Urubu", uma fábula do Poder, no reino imaginário da Centopéia, deve ser visto, por cada um, a sua maneira, tirando a ilações que julgar necessário. Mas se destaque os cuidados da produção: Antônio Carlos Kraide, substituindo a última hora o ator Sansores França, está seguro no difícil papel-título. No sistema coringa, todo o elenco dá o máximo, embora Tonica, com sua elétrica presença, boa experiência em muitas montagens, seja o maior destaque. Dante Mendonça, além de conseguir dar o surpreendente e inesperado toque dramático que encerra a peça (uma surpresa tão grande ao espectador, que se passam alguns minutos até que se entenda que terminou, já que o elenco não volta ao palco) merece duplo elogio: como ator (principalmente considerando-se ser um autodidata, que melhorou de peça para peça, praticamente na base do improviso) e criador de um cenário que sendo despojado é também rico: o trono e o tapete vermelho, criam a atmosfera palaciana: o quadro do rei (onde Dante revela que não é apenas o inspirado cartunista diário de O ESTADO, mas também um pintor de grandes méritos) completa o ambiente pretendido. A música também merece destaque especial: Nilo Dorr, violonista, compositor e cantor, como um trovador medieval, abre de forma lírica o espetáculo e juntando-se a Damasco Sotille (flauta transversal) e Luiz Mineiro (cavaquinho/craviola/ violão de aço) coordenada as músicas integradas exatamente a cada momento: do tema próprio de Sotile ("Bandido") as irônicas referências a conhecidos sucessos de nossa MPB ("Garota de Ipanema", "País Tropical"). Quanto a iluminação de Beto Bruel, pode-se repetir o óbvio: faz por merecer todas as premiações (justas) que obteve nestes últimos anos. "Urubu" merece ser visto. Não para ser elogiado ou simplesmente aplaudido. Mas pelo menos - ou - principalmente - para ser discutido. Pois o teatro que estimula discussão é o grande teatro nos dias de hoje.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
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27/10/1978

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