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Aramis

Gênio Intrumental

Dentro da Música brasileira - sem rótulo de popular ou erudita, contemporânea ou de vanguarda - há alguns criadores da maior voltagem que, sem favor nenhum, merecem a classificação de gênio. São compositores-instrumentistas, eventualmente vocalistas, que não podem ser colocados em categoria estanques, tal a carga que traduzem em suas produções. Entre estes, dois nomes merecem destaque: Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti. Ambos - a exemplo de Antônio Carlos Jobim e Milton Nascimento - para não citar outros exemplos, tem hoje melhores condições de trabalho, ou ao menos de gravação, no exterior do que no Brasil. Sobre Egberto Gismonte - que no dia 21 de maio estará novamente em Curitiba, junto com sua Academia de Danças, abrindo o espetáculo do guitarrista John McLaughlin, no ginásio do Circulo militar do Paraná, falaremos em breve. Hoje, mesmo com brevidade, registremos a ótima oportunidade que se tem de se ouvir Hermeto Paschoal, um autentico bruxo musical, incapaz de se repetir a cada apresentação - e que tem a maior importância na música brasileira nos últimos 20 anos. Ao mesmo tempo que a pequena Imagem finalmente coloca no Brasil o lp que Hermeto fez em Nova Iorque, em 1972, na pequena Muse Recordes, produzido por seus amigos Flora Purin e Airto Moreira, a WEA, que o tem em seu elenco atualmente, mostra o Hermeto de sete anos depois em "Zabumbê-bum-á" (Warner, BR-36.104, abril/79). A criatividade instrumental musical de Hermeto é quase parapsicológia, como reconheceu o próprio Airton, um de seus maiores amigos, seu companheiro no Quarteto Novo e que produziu inclusive três de seus elepes nos EUA. No Iº Festival Internacional de Jazz (SP, setembro/78), o espetáculo de Hermeto foi o mais sensacional: começou às 23 horas e prolongou-se até às 4 horas da madrugada, e com nomes internacionais como McLaughlin, Chick Corrêa e Stan Getz subindo ao Palco e, praticamente pedindo para se integrarem ao seu som totalmente inusitado, múltiplo - onde este albino, cabelos e barbas imensas, tocando desde uma "bacia" de lata até quase destruindo um caríssimo piano elétrico, foi responsável por momentos de integração musical que, acreditamos, dificilmente serão superados. O próprio Hermeto recomenda que todos que vão assisti-los em seus espetáculos devem levar gravadores, pois nunca há a mesma seqüência, o mesmo show. Para gravar, ele existe total liberdade: em 1972, no único elepe que fez para Philips, produção de Rubinho (do Zimbo Trio) ultrapassou todas as horas de estudios previstas estourando o orçamento da produção, mas hora de resultando um dos mais importantes discos instrumentais já feitos em nosso País. Hoje, ele não aceita fazer um álbum com um orçamento menor do que um milhão de cruzeiros. Felizmente, André Midani, presidente da WEA, é um empresário fonógrafo de visão e entende a importância de uma gravadora possui um artista da dimensão desteste alagoano de Arapiraca, 43 anos, capaz de impressionar qualquer tipo de público - em qualquer país. Na loucura musical de Hermeto existe, entretanto, uma sonoridade, uma harmonia, uma beleza que leva a emoção e a vibração sensorial de quem sabe apreciar trabalhos de real criatividade. Em "Hermeto" (imagem, 6001), produzido há 7 anos, ele utilizou cordas, metais, percussão, no desenvolvimento de oito temas - em três dos quais com a participação vocal de Flora e Airto ("Mourning", "The Marianas" e "Pliers", nesta última apenas Flora). Agora, neste "Za-Bumbê-à", gravado nos estúdios Transamérica, no Rio de Janeiro, Herberto recorreu a menos instrumentistas - mas liberou as fronteiras tradicionais, montando textos, com improvisos de palavras, com a participação de diferentes convidados - além de eventuais covalizações. Um pequeno texto na contra-capa do disco talvez auxilie a compreender melhor o seu trabalho: "A música pelo músico, sem experiências nem vanguardas, apenas sentida nota por nota, formando arranjos nos quais os instrumentos, num só tempo, convivem e são individualmente explorados, escute". Tal qual a sua origem, as raízes da música de Hermeto permanecem no Nordeste brasileiro, fonte de sua inspiração. O inteligente release distribuído pela WEA é honesto ao acentuar que "todos os sons da natureza desde a brisa ligeira que faz cantar as folhas dos umbuzeiros sertanejos ao zumbido dos insetos que rodeiam os mandacarus à mercê de um sol ardente, são transformados por Hermeto em quadros sonoros de rara beleza e exotismo. Mas seu espírito criativo não fica só por aí: sua música transcende e ultrapassa os próprios limites dos instrumentos de execução. Assim, Hermeto sente-se à vontade, improvisando na flauta ou em garrafas, de vidros; na-zabumba ou em uma mesa de cedro e até em uma bacia de latão com cordas de guitarra" ( em seu lp anterior "mas slave" produzido em 1977, em Los Angeles, por Airto, chegou a utilizar guinchos de dois porcos numa das faixas). Assim, Hermeto prova o principio de que qualquer som pode se transformar em nota musical, sua música progride tanto para (cima de tensão e caos organizados como para momentos de profunda tranqüilidade e relaxamento. Para Hermeto a voz humana também pode tomar novas dimensões ser empregada como instrumento. A partir de uma palavra são desenvolvidas rimas em cadeira que ilustram, em apresentações ao vivo, seu espírito lúcido e criativo. Assim, embora sua manifestação artística não possa ser afiliada a nenhuma escola estilística, apesar de aproximar-se do Jazz pela improvisação e renovação, Hermeto faz escola por sua originalidade pincelada de fortes nuances sociológicas, tendo sido mestre e influenciado internacionais como Airto e, principalmente Flora Purim (de quem, aliás, a Top Tap acaba de lançar seu elepe "Everyday Everynight", gravado em janeiro de 1978, já na Warner, mas que por razões contratuais no Brasil ainda saiu pela Top Tape). Neste "Zabumbê-bum-à", Hermeto gravou oito composições próprias e apenas "Alexandre, Marcelo e Pablo" de outro autor - Realcimo Lima Filho. Cada faixa constitui, em si, um momento de explosão criativa, onde se nota a absoluta necessidade de Hermeto jamais repetir uma formula, uma idéia: "São Jorge", primeira faixa do lado A, por exemplo evoca os boiadeiros tocando o gado pelas caatingas do sertão, já "Rêde" é uma composição que nos embala num vai e vem contínuo: "poderiamos estar prontos para dormir e sonhar debaixo de um céu estrelado e acariciado pela brisa noturna", diz o release da WEA. E uma preocupação ecológica de Hermeto, que afirma, em sua voz gutural, quase cavernosa - mas absolutamente sincera: "Veja a natureza, que é lindo sim". "Pimenteira", melodia ardente, salpicada de acordes que evoluem para um tema ascendente de raro lirismo e temperado por um solo de bateria. Segure-se um belo diálogo entre a flauta de bambu de broca e a zabumba. A peça chega ao final com a volta ao tema principal e o rufar das placas de ar. "Suite Paulistana" é o ritmo dentro das máquinas e a lamúria ansiosa das sirenes, enquanto "Santo Antônio", abrindo o lado B, retorna ao nordeste, uma romaria de porta em porta colher donativos para a festa do Santo Casamenteiro. Como convidada especial, Divina Eulália de Oliveira registra um improviso-depoimento, conferindo um sentido documental a esta faixa. "Alexandre, Marcelo e Pablo", de Realcino Lima Filho, sugere uma marcha rancho que Hermeto realça na flauta e clavinete. Compõe-se de uma melodia envolvente, bem marcada, com um bonito trabalho de violão de Zabelê. "Suite Norte, Sul Leste, Oeste" é uma combinação alegre e feliz do baião com o xaxado, ao sabor dos sopros e da percussão bem temperada. "Susto", uma marchinha frêvo, quase carnavalesca, cujo tema é conduzido pelos saxes inquietos e salientes. Finalmente, "Mestre Mara", espírito do maracatu e do maracajá, sua imagem evocada pelos tambores e campas. Só músicos identificados com o clima de improviso e a voltagem de criatividade poderiam participar de um disco histórico como este. E eles são Zabelê, Nené, Tiberê, Jovino, Cacau e Pernambuco, Além de Mauro Senise, em nossa opinião a maior revelação em flauta e sax-alto - e que tem desenvolvido um trabalho extraordinário também com Gismonti. Mas Hermeto é único, múltiplo, genial. Diabolicamente criativo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Jornal da Música
1
15/04/1979

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