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Jamil, o pensamento espiritual do poeta

Há muito que Jamil Snege, 47 anos, curitibano até a medula, já adquiriu um status maior como escritor, embora continue em sua simplicidade árabe, modéstia que o faz um intelectual afastado de panelinhas autobadalativas. O reconhecimento nacional de seus textos é tão grande quanto a admiração que granjeou como um dos mais premiados publicitários brasileiros - colecionando troféus e distinções nos últimos anos, seja para agências às quais emprestou o seu talento, seja, nos últimos quatro anos, em sua própria casa, a Beta Propaganda. Às vésperas de completar suas bodas de prata em termos de obra publicada - tomando-se como ponto de partida seus primeiros textos enfeixados na antologia "Contos de Repente", que idealizou, coordenou e financiou em 1965, Jamil jamais recorreu a quem quer que seja para publicar seus livros. Ao contrário, em edições do autor, sem desprezar um acabamento gráfico-editorial cada vez mais cuidado, se dá ao luxo de destinar mais de 80% das (reduzidas) tiragens a um círculo de amigos e leitores, que, atraídos pelo valor de sua obra, procuram cada vez mais merecer a honra de serem incluídos nesta "mailing list" cultural. Só devido à insistência de amigos é que Jamil concordou, há algumas semanas, em fazer uma tarde de autógrafos de "O Jardim, a Tempestade" (82 páginas, capa de Vera Lúcia Bachmann, junho/89), no qual reuniu textos recentes - e cuja repercussão junto à crítica nacional tem sido intensa. De novela-depoimento de sua geração ("Tempo Sujo", 1968) a textos já marcando uma constante evolução com as palavras ("A Mulher Aranha", 1972; "Ficção Onívora", 1982), presença em antologias ("Contos de Repente", 1965; "Assim Escrevem os Paranaenses", 1978), texto para uma premiada proposta ambiental na Bienal de São Paulo ("Bóias Frias"), experiências do teatro ("As Confissões de Jean Jacques Rousseau", 1982, que permanece inédito em termos de encenação), ao ensaio ("Para uma Sociologia das Práticas Simbólicas", 1985), Jamil Snege tem uma obra em progressão. No equilíbrio da ficção e do poeta, acoplado a uma visão jornalística que o fez, no início dos anos 60, participar de importantes projetos editoriais, burilados na linguagem publicitária, Snege tem uma obra cada vez mais significativa. Há 12 anos, quando redator da Múltipla - Propaganda & Pesquisa, criou uma mensagem de Natal que se tornou antológica - e que apenas o tempo a faz tornar-se mais atual. Agora, neste finalzinho de ano, Jamil presenteou os amigos e clientes de sua agência com uma peça muito especial: "Senhor", volume de 26 páginas, papel cartonado, tendo apenas a identificação de seu nome ao final e com direção de arte de Marina Willer, se constitui, com toda certeza, na mais bela mensagem que alguém poderia fazer no limiar de uma nova década. Um ato de reflexão, voltando-se ao espiritual, mas de uma forma toda sua, "Senhor" é, como ele diz, uma interlocução. De um lado, o leitor ou o autor, "qualquer pessoa que tenha sido criança um dia. De outro, esta entidade toda mistério, talvez a mais instigante criação humana - espécie de fantasma que habita os abismos de nossa mente. Reapresentá-la - este é o meu propósito". A leitura dos 22 textos-mensagem-reflexões pode ser feita rapidamente. Mas o que eles deixam no pensamento, na cabeça de cada leitor sensível, corresponde a muitas horas. Assim, Jamil, com sua sabedoria e poesia, fala em profundidade, como se fizesse haikais com arpões da consciência. Leitura para ficar e, como oração, repetir-se sempre. Nesse limiar de uma nova década - e o primeiro dia do resto de nossas vidas - buscamos alguns dos textos de Jamil para fazer de "Senhor" também a nossa mensagem. xxx Senhor, as reflexões-orações (na véspera da nova década) Hoje amanheci insatisfeito. O pão estava amargo E até o jornal que leio todos os dias me pareceu de uma insipidez atroz. De repente, Senhor, lembrei-me dos que não lêem jornais - mas o usam para embrulhar restos de pão que os paladares amargos deixam no prato após uma noite insatisfeita. Como deve ser delicioso esse pão, Senhor, depois que tu o adoças com sua própria boca! xxx Quando eu era pequeno, topava contigo a cada instante. Adolescente, passei a encontrar-te cada vez menos. Adulto, duvidei que algum dia tivesse visto o brilho de tua face e te busquei incessantemente por todos os caminhos. Não te encontrei, Senhor, nem poderia. O piolho que segue na juba do leão jamais terá consciência de que possui um leão inteiro. xxx Quando menino, nascido serra acima, o que mais eu desejava era o mar. Eu queria apenas o mar e mais nada - para nele desfraldar meus sonhos marinheiros. Fui crescendo e ampliando meus desejos. Uma casa junto ao mar, um barco a motor, festas, empregados, piscina. Obtive tudo isso, Senhor. Mas aí então o mar dentro de mim já havia secado. xxx O velho índio foi encontrado vagando pela floresta, aparentemente perdido. Perguntaram-lhe. Respondeu cheio de brios: "Perdi foi a minha casa; não consigo encontrá-la". Quanta lição, Senhor o homem pode perder sua casa, sua rua, os rostos que ama - sem jamais se perder de si mesmo. xxx Não ouças qualquer juízo que eu faça sobre meu semelhante. Amordaça-me. Corta minha língua. A pessoa que acusei de furtar minhas luvas não tinha mãos. xxx Tenho pensado ultimamente em comprar um carro novo. Trabalho com afinco, faço tudo o que devo fazer, mas nunca me sobre dinheiro. Outro dia, fazendo minhas contas, cheguei a botar a culpa em ti: "Deus não tem me ajudado". Que vergonha, Senhor. Tantos homens trabalharam com afinco a vida toda, fizeram tudo o que podiam fazer. E jamais te pediram sequer a passagem do ônibus... xxx Já inspecionai a proa, amarrei a carga, desatei a vela. O vento sopra forte e enfuna meu coração de alegria. Agora é contigo, Senhor. Toma o leme e risca O rumo do meu barco - não penses que irei por este mar sozinho. LEGENDA FOTO - Jamil Snege: reflexões espiritualistas-poéticas.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
31/12/1989

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