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Aramis

Key e a Cultura Popular (II)

O grande humanista e indianista Noel Nutels foi um dos maiores amigos do artista Poty Lazarotto. Juntos, chegaram, por brincadeira, a desenvolver um curioso projeto: fazer uma porta de banheiro, na qual o artista curitibano colocaria sua reconhecida arte em trabalhar com a madeira, com uma seleção das mais picantes frases que, ambos, há anos colecionavam das portas de banheiros públicos. A curiosa idéia foi vetada pelas esposas de Noel e Poty, que afinal, alegaram que esta visão de preservação artística da cultura popular dificilmente seria entendida pela maioria das pessoas. De certa forma 80% das frases existentes naquilo que o pesquisador Key Imguire Jr. Colecionou ao longo de cinco anos e quatro meses (julho de 1976/outubro/1981) para elaborar o ensaio "Literatura Monetária" - um dos cinco saborosos estudos do livro que acaba de lançar - aproximam-se, em palavrões e obscenidades, a "literatura de WCs públicos". Em seus "Cinco Ensaios sobre Cultura Popular" (edição do autor, 60 páginas, dezembro/83), Key sintetiza o que observou nas inscrições encontradas em cédulas de dinheiro. Diz Key Imaguire: "Algumas pessoas contribuiram para a pesquisa, trazendo-me as notas escritas que lhes passavam pelas mãos no mesmo período, contribuição essa que se pode estimar em cerca de 20% da amostragem. Pode-se dizer, portanto, que em circustâncias normais - condicionadas por fatores tais como salário, profissão, inflação, hábitos pessoais - passam por uma pessoa duas ou três notas contendo inscrições, por mês". Para elaborar seu breve estudo, a amostragem foi arbitrada em 200 inscrições. Não houve preocupação grafológica dos originais, "o que não deixaria de ter seu interesse, mas para as nossas finalidades presentes, uma avaliação temática é mais apropriada: é ai que ressaltam os aspectos de cultura popular mais autênticos dessas inscrições". Key Imaguire Jr.; arquiteto, professor e o maior experto em quadrinhos no Paraná, além de arguto pesquisador de aspectos marginalizados que refletem o comportamento e a cultura popular, observou na amostragem que as inscrições nas céculas são sempre feitas com esferográfica azul (raramente vermelha ou preta). As letras de forma são empregadas com freqüência e percebe-se pelos erros de grafia, que os autores não dominam a caligrafia, empregando-a talvez para disfarçar uma letra considerada muito indentificável, como a manuscrita. E, no entanto, a homogeneidade das inscrições manuscritas é muito acentuada: sempre letras miúdas e redondas, caligrafia feminina. Poder-se-á arriscar a hipótese de que essas inscrições são feitas principalmente por mulhers? xxx As notas do dinheiro brasileiro têm um espaço convidativo para se escrever: as linhas verticais sobre a marca d'água funcionam como a pauta dos cadernos escolares e é aí que encontramos a quase totalidade das inscrições. Os valores que mais freqüentemente recebem inscrições são os menores, mas em proporção do que parecem ser os valores com mais unidades em circulação. As mais escritas são as notas de um a dez cruzeiros. Depois as de cem, cinco e cinquenta cruzeiros. Apenas uma de quinhentos apareceu anotada e na pesquisa de Imaguire, nenhum Barão (Cr$ 1 mil) adulterado: Em seu humor oriental, diz o pesquisador: - Mas o que deve ser considerado aqui é que nós, os professoresm temos muito pouca chance de manusear barões... xxx Key Imaguire agrupou as inscrições segundo dez temas mais freqüentes embora numa mesma inscrição podem ser encontrados dois temas ou a inscrição original em um e a resposta (e a continuação) em outro. O maior número refere-se a inscrições líricas, românticas e eróticas. O lirismo varia desde o misticismo fraternal até os mais rasteiros exemplos da maledicência machista. Variam de recados desretensiosamente lançados ao mundo até a mais despudorada das cantadas. Variam do anonimado integral à declaração datada e assinada com nome, sobrenome ou apelido. Nas inscrições referentes ao próprio dinheiro, há três itens: o primeiro e o segundo com manifestações propiciatórias, que dão a impressão negativa sobre quem vai receber o dinheiro a seguir, carregado de ressentimento pela separação inevitável. E há as que se revestem de sentimento positivo, augurando boas coisas ao novo proprietário, dando talvez a entender que o gasto não implica em ressentimentos. Naturalmente, nas inscrições há uma série especificamente relacionada com a inflação e a perda do valor aquisitivo. Uma temática curiosa: as inscrições enigmáticas, que embora sem sentido imediatamente decodificável em alguns casos, dizem respeito, sem dúvida, ao próprio dinheiro. Há as chamadas "inscrições para pegar": um conjunto interessante por seu caráter lúdico, de brincadeira com o seguinte portador da nota. O autor faz com que se vire a nota constata-se que o autor da inscrição nos "pegou" de bobos. Exemplo: de um lado da nota - "Em caso de assalto vire esta nota...". No verso da mesma cédula: "Eu disse m caso de assalto, seu urro! Há também inscrições racistas e bairristas - sendo que a pesquisa de Key localizou muitas manifestações contra alemães, japoneses, negros, catarinenses e "baixinhas" (sc) Em contrapartida há inscrições sobre futebol (de louvação ou crítica entre torcedores de times) e as inscrições demarcatórias, justamente aquelas que identificam na nota o nome ou marca de indentificação, talvez com isso tentando a pessoa que faz a anotação reter o poder aquisitivo do dinheiro após havê-lo gasto. Outra hipótese formulada por Key a respeito: "... parece existir uma curiosidade sobre a trajetória geográfica do dinheiro, manifesta nas inscrições".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
06/01/1984

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