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Aramis

As lições de Vinícius para a ilusão da vida

"E assim como sei que toda a minha vida foi uma luta para que ninguém tivesse mais que lutar, assim é o canto que te quero cantar... Há exatamente uma semana, a delicada operação a que se submeteu na Casa de Saúde São José, no Rio, conduzida pelo neurocirurgião Paulo Niemeyer, fez com que surgisse o boato d a morte de Vinícius de Moraes. Aos 66 anos - completados a 19 de outubro do ano passado, realmente o estado de saúde do poeta é grave, de forma que as notícias de sua "morte" correram rápidas, entristecendo milhões de brasileiros que aprenderam a amar e admirar tanto o poeta, o escritor, como o letrista e o intérprete das músicas que, nos últimos 25 anos vem fazendo com os melhores parceiros. Não foi esta a primeira vez que surgiu a notícia da morte de Vinícius: há cerca de 2 anos, quando excursionava com Toquinho e os fiéis amigos Azeitona (baixo) e Mutinho (bateria), pelo Interior de São Paulo, um internamento num hospital, provocou o mesmo boato. Aos amigos, brincando, o poeta diz que já houve muitas mortes, ele que sempre foi um apóstolo da vida, transmitindo ao longo de toda sua vida, a partir das primeiras canções que fez com os irmãos Haroldo ("Loura ou Morena") e Paulo Tapajós ("Canção da Noite"), em 1927/28, e desde o primeiro livro ("Forma e Exegese", 1937), sempre uma mensagem de esperança, fé e confiança no homem. Nenhum poeta brasileiro conseguiu levar sua mensagem a tanta gente - crianças, jovens e adultos, e poucos seguiram, tão coerentemente, sua própria receita de vida: tal como o amor, posto que é chama, que seja intensa enquanto dure. Assim, a doença de Vinícius de Moraes, um homem cuja vida e obra se confundem tal a intensidade com que tem vivida, faz com que não apenas os seus colegas, os seus amigos - que são muitos, tal sua grandeza de pessoa, se preocupem e concentrem o poder positivo, a fé de cada um, para o seu restabelecimento. Pois mesmo sabendo que a morte, "fim de quem vive", é inevitável, e certos de que sua obra permanecerá enquanto houver amor e poesia no coração do último dos seres humanos, todos querem o poeta forte, com direito ao seu santo uisquinho, "o cão engarrafado", como definiu, sabiamente, um dia, a sua bebida favorita, ao lhe [indagarem] sobre o melhor amigo do homem. O agravamento da saúde de Vinícius coincidiu, praticamente com o lançamento de "Um Pouco de Ilusão", o disco que fez junto ao seu amigo e parceiro de 11 anos, Toquinho (Antônio Pecci, Filho, 34 anos a serem completados no próximo dia 6 de julho)m e que inaugura o suplemento nacional da Ariola, a poderosa multinacional que, em menos de um semestre, conseguiu contratar os mais expressivos nomes da MPB. Na praça desde a primeira semana de abril; "Um Pouco de Ilusão", é um disco que transpõe ao simples registro de músicas da dupla, ou de Toquinho com novo parceiro - Mutinho (Lupiscínio Rodrigues Sobrinho, 40 anos, baterista, violonista e vocalista, na melhor tradição musical de seu ilustre tio). "Um Pouco de Ilusão" foi gravado em 1979, com algumas dificuldades, já que Vinícius, adoentado, não pôde participar de todas as faixas, mas, assim mesmo, em duas delas, há uma emocionante presença. No chorinho "Caro Raul, com uma letra informal, onde se fala dos amigos da noite carioca, da boemia saudável e sempre alegre, Vinícius diz algumas palavras, inclusive citando o paranaense Elifas Andreato, que, emocionado, criou mais do que a capa e programação visual: na proteção-encarte do álbum, incluiu sua forma para saudar "O Poeta Aprendiz": E achava bonita a palavra escrita. Por isso sofria da melancolia De sonhar o poeta Que quem sabe um dia Poderia ser. Consagrado hoje como um dos mais inspirados artistas gráficos brasileiros, ator de capas premiadas (8inclusive a que fez para o lp Vinícius/Toquinho, Philips, 1976, lhe valeu uma premiação internacional), Elifas Andreato merecerá uma grande homenagem no segundo semestre. Por iniciativa de seu amigo Hermínio Bello de Carvalho, da consultoria de projetos especiais da Funarte, será feita uma retrospectiva de sua obra-cartazes, capas de discos e livros, cartões-de-Natal, quadros etc.; que após a exibição no Rio, deve vir a Curitiba. Uma feliz idéia de Marcelo Marchioro, diretor de arte e programação da Fundação Teatro Guaíra, levada já ao secretário Luís Roberto Soares e ao governador Ney Braga, está amadurecendo e, de forma inédita, poderá complementar esta homenagem, especialmente considerando-se que mesmo radicado no Rio, há alguns anos, Elifas é paranaense, o que sempre fez questão de destacar em suas entrevistas. xxx Voltemos, entretanto, a Vinícius. Homem que sempre amou intensamente - e por muitas foi amado - há 3 anos encontrou em Gilda Matoso, professora universitária, poliglota, que residia em Paris, um novo amor. E com Gilda foi que Vinícius esteve em Curitiba, no ano passado, fazendo no Guaíra, as 3 apresentações do espetáculo comemorativo aos 10 anos de parceria com Toquinho. Numa noite, após o espetáculo, jantando no Schwartzkatz, tomando um vinho tinto chileno, Vinícius nos mostrou a poesia que havia feito para Gilda, musicada como valsa por Toquinho, e que só agora, no disco colocado na praça, está sendo conhecida. Como em "O Filho Que Eu Quero Ter", uma obra-prima que Vinícius completou em 1972, em São Luís do Maranhão, quando lá se encontrava, neste "Gilda", sente-se o poeta em seu lirismo maior, mais íntimo e pessoal. Um poema de amor à mulher amada, como só Vinícius saberia fazer. Nos abismos do infinito Uma estrela apareceu e da terra ouviu-se um grito Gilda; Gilda era eu maravilhado ante a sua aparição que aos poucos fui levado nos véus de um bailado pela imensidão aos caprichos do seu rastro como um pobre astro morto de paixão Gilda, Gilda Gilda, e eu e depois nós dois unidos como Eurídice e Orfeu fomos sendo conduzidos Gilda e eu pelas mágicas esferas que se perdem pelo céu em demanda de outras eras velhas primaveras que o tempo escondeu pelo espaço que nos leva pela imensa treva para as mãos de Deus Gilda, Gilda Gilda e eu. "Um Pouco de Ilusão" título extraído de uma estrofe da "Valsa do Bordel", uma belíssima composição de Vinícius-Toquinho que ficou 10 anos proibida pela Censura ("ele é a paixão todo resto é saber/vender um pouco de ilusão"), tem duas músicas de Toquinho-Mutinho ("Escravo da Alegria" e "Oilá"), uma de Toquinho com novo parceiro, Quico ("minha Luz apagou"), uma parceria de Mutinho-Vinícius ("Até Rolar pelo chão"), dentro do espírito descontraído, de grande parte da obra do poeta: "Não quero entrar/para não ter que sair Porque se eu der de sambar/ninguém me tira daqui". Com Toquinho as homenagens aos amigos "Samba Pra Endrigo", "Caro Raul" e "Amigos Meus" (também com uma letra belíssima, que publicamos domingo, mas com uma estrofe que merece ser repetida: Amigos meus/Tá chegando a hora Em que a tristeza aproveita prá entrar E todos nós vamos ter que ir embora Prá vida la fora continuar O aparente pessimismo e tom de adeus, fica, porém com uma esperança no futuro, em seu final: Mas tem também uma sala que está vazia Sem luz, sem amor, sombria Prontinha pro show voltar E em novo dia a gente vai ver novamente A sala se encher de gente Prá gente recomeçar. Mais uma receita de vida está em "Golpe Errado", outra descontraída parceria, até agora inédita, de Toquinho Vinícius, onde falando de que "malandragem não convence/uma vez a gente vence/outra vez bota a perder", diz, sabiamente Lembre, que você mesmo malandro tem que ter, de vez em quando um tempinho pra viver "Nascida" há quase 5 anos, cantada em shows e na qual tiveram a parceria de um amigo muito querido. Carlinhos Vergueiro, "Por Que Será", embora tenha sido gravada anteriormente, adquiriu agora, neste registro, um novo sentido. Como Vinícius nos dizia, há 4 anos, mostrando a música, numa reunião muito informal, de que cada vez que um casal em crise ouvia esta canção, não resistia a uma decisão, realmente "Por que será" é toda sensibilidade de quem vê a vida, em seus encontros & desencontros, amores & desamores - e, com um pouco de ilusão, mas muito de sabedoria, faz com que cada um de nós pense mais a cada manhã ou a cada anoitecer. Por que será/ que eu ando triste por te adorar Por que será/que a vida insiste em se mostrar Mais distraída dentro de um bar por que será/por que será que o nosso assunto já se acabou por que será/ que o que era junto se separou e o que era muito se definhou/ por que será Eu quantas vezes/me sento à mesa de algum lugar Falando coisas só por falar/ adiando a hora de te encontrar É muito triste quando se sente tudo morrer e ainda existe o amor que mente para esconder que o amor presente não tem mais nada para dizer por que será.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
6
26/04/1980

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