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Música popular - Esse tal de João Bosco, um mineiro com talento demais

"E quando acaba a bala? É no rala-rala? Faca com faca? Rapa com rapa? João, heim!? Tua música já atravessou o riacho. Mineiro, é cedo para o cansaço da controvérsia a respeito da beleza e da parecença. Há muito a fazer e tem de ser feito. O Aldir Blanc está com você, o Paulo Emílio e o Cláudio também. E o urubu sai voando, baixo, manso". (Antônio Carlos Jobim) Um grande amigo, o João Emílio, Serrate, jornalista e poeta, com quem curtimos muitos papos de madrugada, no início da década de 60, repetia sempre que a leitura difícil, pesada - como os romances de Guimarães Rosa - poderia ser comparado a escalar uma montanha: o caminho é difícil e extenuante, mas do alto se pode contemplar um panorama maravilhoso. Aproveitando a imagem de Serrate pode-se dizer que certos compositores também exigem um certo "sacrifício" para serem entendidos em toda a sua extensão mas depois passam a oferecer uma rara beleza melódica. Acostumados que o público está a anestesiantes programações na base de "paradas de sucesso", com audições - principalmente no rádio/TV - daquilo que se convencionou de ser "o quente" nos EUA ou Europa - ou mesmo em termos de Brasil, com um impasse na criação musical, é natural que o ouvinte não aceite, com facilidade, a música difícil, que exige um raciocínio - um esforço (aliás cada vez mais se exige menos do público e com isto cada vez cresce mais a mediocridade). Portanto é perfeitamente natural que uma das maiores revelações do ano passado, Elomar Figueira de Melo, baiano de Vitória da Conquista, um baladista do Nordeste descoberto por Roberto Santana tenha passado despercebido com o seu magnífico lp "... Das Barrancas do Rio Gavião" (6349073, agosto-73) onde mostrou suas composições "uma sabia mistura do romanceiro medieval tal como era praticada pelos reis-cavalheiros e menestréis errantes que culminou na época de Elisabeth, da Inglaterra; e do cancioneiro do Nordeste com suas toadas em terças plangentes e suas canções de cordel, que trazem logo a mente os brancos e planos caminhos desolados do sertão, no fim extremo dos quais de repente surge um cego cantador, com os olhos comidos de glaucoma e guiado por um menino - anjo, a cantar façanhas de antigos cangaceiros ou "causos" escabrosos de paixões espúrias sob o sol assassino do agreste", como escreveu Vinícius de Moraes, um dos que souberam entender a música do Elomar. Mas, pergunto, quem ouviu algumas de suas músicas programadas em nossas emissoras, embora qualquer uma esteja entre as melhores do ano (nos particularmente, em nossa seleção, destacamos a "Inceleça do Amor Retirante"). Mas se Elomar arquiteto e fazendeiro se recusa a entrar na sociedade de consumo preferindo a Cia, de seus bodes (um deles inspirou ao humorista Henfil o personagem "Francisco Orellana", na HQ de Zeferino e Grauna, diariamente no caderno B do "Jornal do Brasil") e com isto permanecerá desconhecido (mas puro) em sua maravilhosa criatividade o mineiro João Bosco apesar de ter um trabalho pessoal tão belo e difícil quanto o de Elomar por certo conseguirá uma maior comunicação. Por favor não queremos aqui comparar o trabalho de Elomar com o de João Bosco - cada um com personalidade própria e, por sinal seguindo inclusive caminhos musicais diferentes mas é que tanto um - o baiano Elomar - como outro - o mineiro João Bosco - são compositores aparentemente "difíceis" a primeira vista, que exige que se escute cada uma de suas canções com o máximo de atenção - e não como música de fundo de conversa. João Bosco surge na música brasileira com ótimos padrinhos. O primeiro deles é, coincidência ou não, o mais importante compositor deste País Tropical, Antônio Carlos Jobim que em maio de 1972, dividia com ele o compacto que acompanhava o número 1 da revista "Disco de Bolso" notável experiência que infelizmente não passou de duas edições (1). Assim enquanto na face A do "Disco de Bolso", Antônio Carlos Jobim interrompia um silêncio de 3 anos para mostrar a mais bela música daquele ano (e dos últimos tempos) - "Águas de Março" no lado B, João Bosco apresentava "Agnus Sei", com letra de Aldir Blanc. E é claro que um dos textos do "Disco de Bolso" explicava "Quem é esse tal de João Bosco?" - "Mineiro há 24 anos, esse tal de João Bosco nasceu em Ponte Nova e vive em Ouro Preto. É alto, magro, bebe cana, toca violão paca e a turma diz que um dos três braços: ou o violão dele. Está no último ano de Engenharia mas também estuda música e compõe. Foi o que deu prá saber". O texto explicava que seu parceiro, Aldir Blanc (aliás Aldir Blanc Mendes) só estivera até então (maio/72) com ele quatro vezes. Conheceu João no Rio, em janeiro de 1971 tocando e cantando na casa de um amigo. João compõe em Ouro Preto, manda a fita para o Aldir que põe a letra, nota por nota. A verdade é que João Bosco começou a fazer música quando estudava engenharia de Minas em Ouro Preto e ali conheceu o pintor Carlos Scliar, que logo se tornaria seu grande amigo e incentivador. Numa de suas circuladas mineiras, Vinícius de Moraes conheceu João e se entusiasmou com o moço. Lá por 70 ele veio até o Rio e então entusiasmou o pessoal que o ouviu. Conta o desenhista Ziraldo: - "Era um sábado, de tarde, baixou um bando, João Bosco com o violão na frente. Antes de acabar o repertório eu já tinha telefonado para o Sérgio Ricardo com aquela alegria de mineiro que acha uma pedra grande na lavra". Aí apareceu Sérgio Cabral e deu uma dica no "Pasquim", escrevendo que punha toda sua reputação (dez anos de música popular) em jogo: "nada, rigorosamente nada, é mais importante atualmente na música popular brasileira, em matéria de coisa nova, do que a dupla João Bosco-Aldir Blanc". E terminava dizendo: "Leitor só quero o seu testemunho: fui o primeiro a fazer dica dessa dupla". No mais, Tom Jobim depois de ouvir "Agnus Sei" pela primeira vez disse: "Esse mineiro é bom demais. Tira ele do meu lado". João agiu mineiramente: voltou para Ouro Preto, terminou o curso e só no ano passado retornou a Guanabara. Enquanto isto "Bala com Bala" estourava nacionalmente, não na sua voz - pois o "Disco de Bolso", naturalmente foi prejudicado no esquema de distribuição mas na gravação de Elis Regina, que o incluiu em seu álbum de 72 e que em 1973 voltaria a acreditar em João Bosco gravando nada menos do que 4 outras de suas composições no seu lp anual (Philips, 6349076): "O Caçador de Esmeralda", "Agnus Sei", "Cabaré" e "Comadre". Luiz Eça, quando esteve em Curitiba em agosto de 72, fazendo a estréia nacional do Tamba Trio, reagrupado após uma separação de 8 anos - Hélcio Milito na percussão e Bebeto no contrabaixo - também não se cansou de falar de João Bosco inclusive destacando a inclusão da música "O Boi", no repertório do grupo. Com tantos avais, o moço não poderia deixar de ter sua chance de gravar um lp. A RCA-Victor em face de restruturação artística, acreditou e lhe contratou por dois anos de cujo adiantamento (Cr$ 20 mil) vivia até há pouco, casado, no apartamento que ganhou de presente gastando uma média de Cr$ 800,00 por mês. Tarik de Sousa, editor de música popular do semanário "Opinião", em grande reportagem ("Os Nossos Novos Compositores") publicados há alguns meses (nº 37, 23 a 30 de abril-73) opinava que "de entonação semelhante a Milton Nascimento, João apesar de tudo traz uma forma nova de bater o violão muito ligada ao ritmo e que lembra mais a música árabe que nacional especialmente nos improvisos sem palavras em que explora as nuances da voz no sentido de Gilberto Gil (seu influenciador na música "Bala com Bala", gravada por Elis, maior êxito de Bosco, que lhe rende em média 700 cruzeiros de direitos autorais por mês"). É Tarik ainda que conta que João Bosco foi líder do extinto conjunto de rock X-Gare (violão, bongô, bateria, maraca, "ainda não havia guitarra"), "o primeiro de Minas", fundado em 57. João ouviu muito Little Richards, Elvis Presley e outros. Depois do encontro com Vinícius na Pousada Chico Rei, em Ouro Preto (do que nasceu "O Samba da Pousada"), teve início uma nova fase de sua carreira. Absolutamente consciente, João preferiu viver modestamente na GB, aguardando o lançamento de seu lp - gravado em julho só saiu em novembro, ao que consta devido a crise de matéria-prima - (PVC), para só agora começar "um trabalho de conjunto para mostrar principalmente as coisas novas". Aliás, há sete meses, na entrevista a "Opinião", ele já explicava que as músicas gravadas no lp (com letras de Aldir Blanc ou Paulo Emílio e Cláudio Tolomei) "eram as primeiras águas, armazenadas na direção do hermetismo. Agora já não estamos mais nessa, minha última safra tem tangos, boleros, rocks, frevos e samba-enredo, sem quaisquer preconceitos". Produzido por Rildo Hora - um dos melhores record-man da equipe da RCA (2) - o lp João Bosco (Victor, Lo3.0062), gravado nos estúdios da Victor de 16 canais em São Paulo, marcou também o trabalho de Luiz Eça como arranjador em cinco faixas enquanto Rogério Duprat cuidou das sete outras. No acompanhamento, Luiz Eça tocou piano e órgão, Bebeto, baixo flauta e ritmo; Hélcio, tamba e ritmo; Chico Batera e Everaldo, bateria e ritmo; Guilherme, surdo e ritmo; Dirceu, bateria; Cláudio, baixo, Rubão, tumba; Guilherme, efeitos de percussão e Aristeu, guitarra. Para se ter uma idéia do trabalho da percussão, basta relacionar os instrumentos usados neste setor: kalimba, corrente, guiro, bambu, tumbadora, tamborim, pandeiro, coco chinês, aquafone, folha metálica, agogô, pedrinhas de sal, queixada, chocalho de arroz, triângulo, reco-reco, tabla, tamba e flexaton. Carlos Scliar, um dos mais famosos (e difíceis) artistas brasileiros, fez a capa e um desenho especial, ilustrando a página dupla, com as letras que acompanham o lp. E, há algumas semanas, em sua visita a Curitiba nos explicava que pretendia desenvolver um trabalho bem mais avançado - só não o fazendo por falta de tempo. Bem, até agora procuraremos oferecer ao leitor - principalmente aos do Interior, que ao contrário dos "expertes" de nossa cidade não dispõe de maiores informações sobre a nossa música - alguma coisa a respeito "deste tal de João Bosco". Afinal, são elementos que ajudam a entender a sua obra. Mas o mais importante é a sua música. Pelas canções já conhecidas - "Bala Com Bala", "Agnus Sei", "Comadre", "O Caçador de Esmeraldas" e a antológica "Cabaré", gravada por, Elis com rara perfeição das letras de seus parceiros. Em "Cabaré", por exemplo, há algumas das mais bonitas imagens já criadas no cancioneiro brasileiro. Mas é pelas músicas do seu lp que se percebe toda a dimensão musical de João Bosco - e também de seus parceiros, em especial Aldir Blanc, hoje dividindo com Paulo Cesar Pinheiro, o título de melhor letrista do Brasil. Scliar nos contou que muitos tentaram fazer letras para as músicas de João Bosco - inclusive o crítico de artes visuais Roberto Pontual - mas poucos conseguiram. E realmente há necessidade de uma perfeita integração som/palavra, pois são todas músicas trabalhadas, verdadeiros desafios literários e que entusiasmaram o poeta e professor Affonso Romano Sant'Anna interessado em dedicar um longo ensaio a este trabalho (3). Seja em temas menos vanguardistas - como "Tristeza de Uma Embolada", "Alferes", ou nas experiências dignas dos melhores momentos do grupo concertista de São Paulo - "Amon Rá e o Cavalo de Tróia" (letra de Paulo Emílio) ou "Quilombo" (Letra de Aldir Blanc) sente-se toda a seriedade do trabalho de João Bosco. Há canções com uma crítica ao estilo dos baianos (Gil/Caetano) como "Nada a Desculpar". Dentre as mentiras da vida duas nos revelam mais - É um prazer conhecê-lo - Era muito bom rapaz "Angra", de quem Luizinho nos falava há mais de um ano com tanto entusiasmo, é uma música de sabor geográfico, quase uma ilustração sonora dos melhores momentos de uma literatura própria: Angra desolada, dia que não raia, barcos submersos, rochas de atalaia; redes agonizam pelo chão da praia; lemes submissos, dia que não raia azul. Já em "Fatalidade" (Balconista teve morte instantânea) temos uma música social, num outro aspecto do múltiplo talento de Bosco/Blanc: Pela pista fatal da Avenida (Brasília) ela volta e tem direito a um metro de paisagem. Com um filho na barriga. De que lado da avenida ficará a vida dela: luz lilás, arrependida, ou sumida na favela? A julgar pelo que João diz de "já estar em outra" é de se esperar que a seu show - um dos mais aguardados deverá ser algo de importante e transcendental. Pois este seu primeiro lp, por ele mesmo explicado como "comportado" está entre as coisas mais sérias feitas no Brasil em termos de uma música atual contemporânea, inquietante. Uma música difícil - letras até certo ponto herméticas - mas que oferecem uma grande satisfação a quem consegue ter lucidez para ouvi-las e compreendê-las. Não há dúvida, de que nossa música popular tem cada vez surpresas mais agradáveis (e importantes). João Bosco (e seus parceiros, em especial Aldir Blanc, nunca se pode esquecer) é uma prova concreta disto. Um Everest de vitalidade musical nesta década. NOTAS (1) Cantor, compositor e cineasta Sérgio Ricardo idealizou o "Disco de Bolso" com nobres intenções, mas infelizmente saíram com Caetano Veloso cantando "A Volta da Asa Branca" de Luiz Gonzaga e Fagner interpretando "Mucuripe". (2) Rildo Hora é também um inspirado compositor e bom cantor, mas que apesar de ligado a RCA Victor fez até hoje um único lp: "A Hora e a Vez de Rildo Hora". (3) Diretor do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica da Guanabara poeta premiado Affonso Romano Sant'Anna tem desenvolvido excelentes ensaios sobre a poética na música popular brasileira, publicando análises das obras de Caetano Veloso e Chico Buarque de Hollanda no "Caderno B" do "Jornal do Brasil" e pronunciado conferências como recentemente fez no Paiol, encerrando o Curso de Introdução a MPB promovida pela Fundação Cultural de Curitiba.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
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13/01/1974

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