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Aramis

A noite do frio cristal na abertura do Free Jazz

São Paulo, setembro - A temperatura estava agradabilíssima na noite de quarta-feira: ao redor de 22ºC no Anhembi, o confortável auditório no qual se realizam os grandes eventos culturais em São Paulo e a temperatura musical na abertura da fase paulista do III Free Jazz Festival não poderia também ser mais equilibrada, quase dizendo, cool. Foram cinco horas de um som extremamente elaborado, suave, criativo, numa atmosfera slowly - quase que como uma espécie de preparatório para os sons elétricos do Spyro Gyra que viria a se apresentar nos dois últimos dias do Festival - hoje com Hermeto Pascoal, Gil Evans Orchestra (tendo a participação especial de Airto Moreira) e The Chick Corea Elektric Band, com os brasileiros da Cama de Gato, o americano Lee Ritnour e os africanos do grupo liderado pelo nigeriano King Sunny Ade. A saudade fez um samba - aos 70 anos, desde 1947 residindo nos EUA, Laurindo de Almeida, paulista de Miracaí, vestindo uma camisa de seda azul, cabelos meio ruivos, acrescentou um sotaque americano ao seu português. Assim foi que, devido a pouca atenção da platéia, que ainda não lotava totalmente o auditório do Anhembi - quando iniciou sua apresentação, com mais de 40 minutos de atraso, reclamou de perturbadores, dizendo: "Agora eu faço o meu show. Depois vocês fazem o espetáculo que quiserem...". Está certo que Laurindo de Almeida vive há quatro décadas fora do Brasil e não existe nenhum de seus 120 elepês (feitos nos EUA) em catálogo entre nós. Mas o infeliz apresentador, não precisava exagerar, anunciando-o como "Laurindo de Oliveira". Depois, quando Zuza Homem de Mello, um coordenador do Free Jazz, lhe chamou atenção, o locutor tentou justificar: - "É que confundi com o Laudir de Oliveira" - referindo-se ao percussionista brasileiro, ex-integrante do Chicago. Com um "ovation" de ótima sonoridade, Laurindo abriu a noite com as notas de um dos mais belos clássicos de Jerome Kern, "All the Things You Are". Depois, no microfone, falou que apesar de ser um festival de jazz, queria homenagear a Villa-Lobos, executando uma de suas peças. A seguir, mostrou sua "sambalização" em torno de "Clair de Lune", de Debussy. Finalmente, um tema jazzístico: lembrando que o falecido Band-Leader Stam Kentom foi um dos primeiros que o empregaram nos EUA, em 1948, mostrou sua versão da mais conhecida das obras daquele band-leader, "Artistry in the Rhythm". Numa forma suave, quase fria, sem inovações maiores - mas profundamente suave, Laurindo foi desfilando um repertório conhecido, homenageando aqueles compositores que aprecia, como Antônio Carlos Jobim ("Insensatez"), Baden Powell ("Canto de Ossanha"), Henry Mancini ("Dear Heart"), David Rose ("Holliday for Strings"), Richard Rodgers ("Slaughter on 10th Avenue") e até Mozer ("Um Samba Bossa", a partir de movimentos de sua sinfonia nº 40). O lado do compositor Laurindo foi mostrado em "Prelúdio de Outono", uma das composições dedicadas a sua esposa, a cantora lírica canadense Deltra (ou Dee-Dee) que o acompanha nesta temporada brasileira. No final, falando mais uma vez de sua emoção em voltar a São Paulo, anunciou sua temporada no "150" do Maksoud Plaza, a partir da próxima semana. Espaço bem mais apropriado para o seu violão intimista, precursor da bossa nova (em 1952) nos EUA, gravou com o saxofonista Bud Shank, "Inquietação", de Ary Barbosa, já com uma batida diferente ao violão e, que neste ano, foi homenageado especial pelo festival - que em 1985 trouxe outro músico auto-exilado artisticamente nos EUA, o maestro Moacir Santos e, no ano passado, reverenciou antecipadamente ao ano Villa-Lobos, convidando o violinista Turíbio Santos e o múltiplo Egberto Gismonti para fazer as aberturas do festival no Rio e São Paulo, respectivamente. Laurindo de Almeida, este ano, teve um sabor de nostalgia, de saudade - com seu violão extremamente suave em contraposição ao que se seguiria no festival - tanto no Rio (no qual, o jovem Rafael Rabello, 24 anos, arrasou) como em São Paulo. A viagem magnífica - Possivelmente se soubesse que Jim Hall iria incluir em sua apresentação também uma leitura de "All the Things You Are", como último número de sua apresentação, em duo com o pianista Michael Petrucciano - a grande revelação do Free Jazz para o público brasileiro - por certo Laurindo de Almeida não teria iniciado sua apresentação com o tema de Jerome Kern. Afinal, Jim Hall, 56 anos, 32 de vida musical, um dos maiores guitarristas do jazz moderno (e que só havia estado no Brasil em 1960, acompanhando Ella Fitzgerald) simplesmente foi maravilhoso em seus improvisos. Perfeccionistas insatisfeitos, influenciados por dois dos maiores mestres da guitarra do mundo - Charlie Christian e Django Reinhard, mais tarde por Sonny Rollins e Bill Evans (com quem chegou a fazer um histórico elepê), Jim Hall foi responsável por aquele que seja o momento mais jazzístico de todo este Free Jazz. Integrando-se a sonoridade marcante dos teclados de Michel Petrucciani, consegue nas teclas, fazendo-as soar de forma única, Jim Hall fez com que o Anhembi, já totalmente lotado quando de sua apresentação, ficasse inteiramente atento aos vôos sonoros vindos de sua guitarra e dos teclados de Petrucciani, num perfeito steimway. Ao contrário, para quem realmente aprecia o jazz feeling, a audição de Hall e Petrucciani permanecerá na retina, a partir dos dois primeiros temas que apresentaram em conjunto - "Blue for Carefull" e "Beautiful Love" (este, um dos temas favoritos do falecido pianista Bill Evans, que chegou a apresentar em Curitiba, quando de sua apresentação no Guaíra, há 7 anos). "Skylark" em solo de violão, foi o primeiro deslumbramento - solo para Jim Hall, dando uma dimensão que se pode até chamar de extra-sensorial ao belíssimo tema de Hoagy Carmichael, este clima atingiria o máximo em duo com Petrucciani - homenagearia Duke Ellington, com seu profundo "Innocent Mental Mood" - seguido de "All the Things You Are", de Kern. Os aplausos, imensos, justificaram um número extra: uma visão profundamente romântica de "Autumm Leaves". Tempo e a magia de Glass - Se Michael Petrucciani, filho de italianos (criado na França, o pai guitarrista de jazz), mede menos de um metro de altura e pesa pouco mais de 20 quilos, sofrendo de uma doença rara conhecida como "ossos de vidro", faz com que o público esqueça de seu tipo físico ao dedilhar as teclas - transportando a todos para um mágico clima sonoro, a presença de Philip Glass, no palco, adquiriu, na noite de abertura do Free Jazz, uma dimensão especial. Acompanhado por dois tecladistas - sintetizadores, Michael Riesman e Martin Goldray; três sopros - Jack Kripl (flauta, picole, soprano e barítono), Richard Pook (flauta, sax alto e tenor) e John Gison (sax, flauta), seu Ensemble ganha uma presença feminina especial: a soprano Dora Chrenstein, também executando os teclados de um emulator. No centro, trajando um negro terno convencional, lembrando um pastor mórmon, o técnico de som - que ao final de cada número, era o que mais se curvava agradecendo os aplausos do público. Vendo-se Philip Glass no palco, entende-se melhor porque é considerado hoje como o grande nome da vanguarda musical. Com exceção de círculos muito especiais, até o final de 1984 era um ilustre desconhecido entre nós. Quando o crítico Leon Cakoff trouxe para a sua 8ª Mostra Internacional do Cinema o filme "Koyaanisquatsi" e, posteriormente, a edição (via CBS/Museu do Disco) de sua trilha sonora e de dois outros álbuns de Glass ("Glasswork", "The Photographer") aumentaram o interesse por seu trabalho - coincidindo com sua visita ao Brasil, país em que Raggio faz seqüências de seu novo filme, ainda em fase de rodagem, "Powqqatsi" - também sobre a destruição ecológica do terceiro mundo. Autor de óperas inovadoras - como "Einstein at the Beach" e "The Civil Wars" (esta, montada apenas em partes, em alguns países), trabalhando atualmente em novos e inusitados projetos - "The Making of the Representative for Planet 8", com libreto da escritora Doris Lessing e "Aknaten", em colaboração com o inglês-carioca Gerard Thomas (possivelmente estreando em Campos do Jordão, em julho de 1988), Glass é um artista em (permanente) desenvolvimento. Agora mesmo nesta temporada paulista, com seu amigo Gerard Thomas, discute a musicalização de uma peça baseada em três contos de Franz Kafka. As informações sobre Glass, de quem saíram recentemente duas novas gravações no Brasil (a trilha sonora do filme "Mishima", edição WEA e "Glass Dance", pela CBS) auxilia o entendimento de sua obra. A música que faz com sintetizadores, aplicados de forma inteligente, sai como uma extraordinariamente bem desenvolvida massa sonora. As partituras de suas peças imensas mostram o cuidado com que seu trabalho é desenvolvido e os seus músicos, em cena, parecem tão exatos como se fossem robôs computadorizados. A presença mais viva e emocionante é da soprano Dora Chrenstein, uma mulher de estranha beleza, extremamente feminina, cujo canto sobrepõe-se aos sons diversos que emanam dos sintetizadores e instrumentos de sopro. Aliás, o técnico de som, infelizmente sem crédito de seu nome no programa - tem toda razão para agradecer os aplausos: a proposta sonora de Glass exige uma acústica e difusão perfeita, sem a qual se perderia totalmente. A inclusão de Philip Glass Ensemble no Free Jazz foi, sem dúvida, uma escolha feliz - pois, fugindo de qualquer rótulo - minimalismo (como foi identificado, no início), Free, Fussion, New Age (que "carimba" seu último elepê pela CBS), Philip Glass é, realmente, o som mais contemporâneo e amplo que se tem neste final de milênio. LEGENDA FOTO - Spyro Gyra.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
12/09/1987

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