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Aramis

O amor & a vida na ótica de Truffaut

Alguns críticos costumam dizer que os grandes cineastas - como Fellini, Resnais ou Bergman - muitas vezes parecem estar sempre (re)fazendo o mesmo filme. A esta relação pode-se acrescentar François Truffaut, hoje aos 48 anos e, sem margem maior de discussão, talvez o mais regular e sólido de toda a chamada geração "nouvelle vague". Embora ao longo de sua filmografia de longas-metragens, a partir de 1959, tenha freqüentado diferentes gêneros, o que mais tem caracterizado sua obra é o otimismo, a contemplação dos sentimentos humanos, os encontros e desencontros. Para nós, neste ano, o melhor filme que chegou a nossas telas foi o injustamente esquecido "O Homem Que Amava as Mulheres", produção de 1977. Mas onde Truffaut mais tem circulado em torno de um mesmo tem-personagem é a respeito de Antoine Doinel, que aparecia em seu primeiro longa-metragem - "Os Incompreendidos" ( Les 400 Coups) e, sempre com o mesmo interprete - Jean Pierre Leaud, reapareceria mais quatro vezes, chegando a este "O Amor em Fuga" (Cinema 1, hoje último dia em exibição). Susana Schild, jornalista que viveu longo tempo em Paris, garantia há alguns meses ("Jornal do Brasil", 28/5/80) que este é o último encontro do criador/criatura. Mas há 5 anos, em entrevista a um jornal suíço, Truffaut já dizia que não faria mais filmes com o personagem Antoine Doinel, interpretado por Leaud em "Os Incompreendidos", o episódio "Antoine et Colette" em "O Amor aos 20 Anos" (1962), "Beijos Proibidos" (1968) e "Domicilio Conjugal" (1970). Explicava, em 1975, por que: o adulto Doinel não lhe despertava o mesmo interesse de quando criança, adolescente e jovem adulto. Por isso, encerrava a trajetória do rapaz em "Domicilio Conjugal". Doinel casava-se com Christine (Claude Jade), viveria feliz para sempre. E ponto final. Ou quase. Assim como cantores e políticos anunciam várias vezes o fim da carreira, Truffaut para alegria de seus admiradores -prolongou por um filme - só mais este, garante -a existência de Doinel, realizando "O Amor em Fuga". Aqui, o filme começa com Doinel recém divorciado, um filho, mas conservando o espírito de adolescente sonhador, capaz de seguir todas as pistas que levam ao rosto de um retrato que achou, aos pedaços, em uma cabina telefônica. Ou fazer, impulsivamente, uma viagem de trem porque viu uma ex-namorada dos tempos da adolescência. Sobre os filmes anteriores, "O Amor em Fuga" tem uma vantagem: permite o aproveitamento da melhor parte de outros filmes da série, que entram e saem da narrativa, projetados por lembranças dos personagens. Como acentuou Susana Schild, ao assinarem o divórcio, Doinel e Christine lembram cenas de "Beijos Proibidos" e "Domicílio Conjugal", o reencontro com Colette (Marie France Pisier) mostra seqüências de "O Amor aos 20 Anos"( que poucos viram, na anônima projeção no Glória, em 1964) e através de associações de Doinel ou de uma autobiografia que escreveu são relembrados cenas da adolescência de "Os Incompreendidos". Um encontro casual com um ex-amigo de sua mãe, Monsieur Lucien (Julien Bertheau), recupera imagens de sua mãe, também de "Os Incompreendidos". Vinte e um anos e vários filmes depois, ela reaparece para ser repensada, reformulada. A alma nova do filme vem através de sabine (Dorothé), com que Doinel deixara de existir, porque se recusa a crescer, como se tivesse vida própria e, rebelde, desobedecesse às ordens do criador. Doinel é imaturo e inconstante, atraindo mulheres maduras e decididas. No amor, constata Truffaut, os homens são amadores e as mulheres, profissionais, e ele reconhece a fragilidade que dá aos seus personagens masculinos. Na mão de um cineasta menos talentoso do que Truffaut, um personagem como Doinel não resistiria sequer a um filme. Mas com a segurança que o inclui entre os melhores realizadores contemporâneos, Truffaut descobre sempre um encanto, uma forma lírica, pessoal, humana de transmitir uma mensagem de amor e ternura em seus personagens. Sua filmografia, com filmes que vão do policial ("Tirez sur le Pianista", 60; "A Noiva Estava de Preto", 67) a ficção-cientifica ("Fareinheit 451", 66) ou ao semidocumental ("O Garoto Selvagem", 72), tem, entretanto, no lirismo, no romântico, os seus momentos mais perfeitos: a obra-prima "Uma Mulher para Dois" (Jules et Jim, 61) e "L'Homme Qui Amait les Femmes". Mas também voltando ao mundo da infância, como "A Idade da Inocência" (L'Argent du Poche) ou fazendo um filme sobre um filme ("A Noite Americana", 73), Truffaut jamais decepcionou o público que o admira. A visão, agora, deste "O Amor em Fuga" se torna oportuna, numa hora em que simultaneamente a estreia de seu último longa-metragem - "Le Dernier Metro", três outros companheiros da "nouvelle vague", hoje senhores cinqüentões, também retornam com filmes novos: "Atlantic City" ( grande prêmio no último Festival de Veneza) de Luís Malle; "Le Cheval d'Orguei" de Claude Chabrol e "Sauve Qui Peut-la Vie" de Jean-Luc Godard. Vinte anos após a "nouvelle vague" ter surgido com uma força demolidora, trazendo uma geração de cineastas inquietos, a maioria egressa da critica do "Cahiers du Cinema", poucos foram os que sobreviveram. E de todos, Truffaut foi o que manteve um trabalho mais regular, rodando às vezes até 3 filmes num mesmo ano, sempre com segurança. Entrevistado por Daniele Heymann/Michel Delain, do "L'Express", há algumas semanas, Truffaut declarou a respeito daquele movimento: "Minhas cóleras na época do "Cahiers" e "Arts" não eram fingidas. Mas suponho que eram, como diria, um desvio. Devia haver alguma coisa que não grudava em minha história privada... Dito isso, havíamos tratado tanto, analisado os realizadores um por um que a idéia de grupo não nos veio à mente. Eis porque, em minha opinião, é falsa a "nouvelle vague". Havia uma solidariedade, é certo. Mas não havia conspiração para que alguns voltassem para casa e abandonassem a profissão... Tinhamos antes a idéia de fazer histórias mais simples. Desejamos filmes que se parecessem a primeiros romances... Na verdade, a principio, não me via bem como encenador. Achava que seria roteirista ou colaborador em roteiros. Hoje, porém, resta um ponto sobre o qual continuo extremamente obstinado a ponto de ser tachado de passadista: um filme deve poder ser visto por qualquer pessoa. Por pessoas que não se preocupam com o nome do diretor, olham apenas as fotos nos cartazes da entrada de um cinema para resolver se o filme vai ser divertido ou aborrecido". Xxx As palavras de Truffaut ajudam a entender porque tem procurado a simplicidade em seus filmes. Ao contrario de alguns companheiros-de-geração especialmente Alain Resnais, seus filmes muitas vezes são até considerados "comerciais". Também não adotou a postura política de Godard, que há 12 anos chegou a abandonar o cinema tradicional por uma vivência ativista. Mas admirável quem consegue fazer filmes de tanto humanismo como Truffaut, cujos personagens parecem sair de sua França e chegar a qualquer cidade, na identificação de seus sonhos, anseios, problemas. Na galeria de personagens que criou, muitos ficarão para sempre, como exemplos significativos. E Antoine Doniel, com suas dúvidas, incertezas, encontros desencontros, é um dos que mais nos toca. Talvez porque, em sua busca de amor, enquanto as mulheres parecem desejar ligações definitivas, ele prefere os romances transitórios. Mas que, como diria o eterno Vinícius, sejam intensos enquanto duram. LEGENDA FOTO 1 - Doinel (Leaud), Christine (Claude Jade) e Liliane (Dany): o amor em fuga.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
9
22/10/1980

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