Login do usuário

Aramis

O jazz de protesto no melhor lp de 84

O jazz pode também ser música de protesto? A resposta é positiva. Basta ouvir "The Ballad of the Fallen" (Barclay/ECM, dezembro/84), seguramente um dos dez melhores discos do ano passado (conforme indicamos em nosso referendum) e um dos três "record of year" no Jazz Poll dos leitores da revista "Dow Beat" (dezembro/84) (1). Um disco tão político que a gene esquece suas raízes jazzísticas. Charlie Edward Haden (Shennadoah, Iowa, 6/8/1937), escolhido também pela DB como o baixista do ano, é um compositor identificado com os problemas sociais. Em 1968 compôs uma "Song for Che" (óbvia referência a Guevara) e, oito anos antes ao lado do trompetista Don Cherry, participava do histórico "Free Jazz", com Ornette Coleman marcando a vanguarda do jazz. Outro baixista, Charlie Mingus (1922-1979) ensinou que o jazz pode marcar criticamente - e disto deu exemplo no "Fables of Faubus", uma suíte dos anos 60 ridicularizando o governador racista do Alabama e "Remember Rockfeller at Africa", quando o prefeito nova-iorquino, há 12 anos, ordenou o massacre aos presos na penitenciária de Attica. Charlie Haden, com a efetiva participação de um grupo de primeiro nível e o patrocínio de Manfred Eicher, realizou, em 1983, esta "Balada para um Fuzilado" - exclusivamente com temas políticos, ligados desde a Guerra Civil espanhola até a recente intervenção norte-americana em El Salvador, passando pela revolução dos cravos e movimentos de resistência contra a ditadura Pinochet, no Chile. O título do lp foi retirado do poema em espanhol "Milonga para um Fuzilado", encontrado junto ao corpo de um estudante morto num massacre promovido na Universidade de San Salvador pela Guarda Nacional ajudada por forças norte-americanas. O poema, em suas primeiras estrofes, já emociona: "Não me pergunte quem eu sou/ou se me conheceu/Os sonhos que tive/crescerão apesar de eu não mais estar aqui/Não estou vivo, mas minha vida continua/porque outros continuarão a luta/novas rosas desabrocharão/e no nome de todas estas coisas/você encontrará o meu nome". Sem dúvida que o projeto de Haden emocionou amigos-músicos identificados artística e intelectualmente. Assim, Carla Bley - hoje a mais talentosa tecladista/compositora americana (mas ainda inédita no Brasil) cuidou dos arranjos e também compôs dois temas identificados ao espírito desta produção; a "Introduction to People", que partindo de harmonias espanholas antecipa ao hino que Sérgio Ortega e o grupo Uilapayun fizeram para a resistência no Chile: "El Pueblo Unido Jamas Será Vencido". O outro tema de Carla é "Too Late", um dueto para piano-baixo, na abertura do lado B, que traz "La Passionara", o hino em homenagem à líder da resistência espanhola, Dolores Ibarruri, que tornou famoso o slogan "No Pasaran". Outro hino catalã, revivido durante os dias sangrentos da Guerra Civil Espanhola, completa o lado 2: "La Santa Espina"- e da mesma época são "Si Me Quieres Escribir", e "Els Segadors". Completando a presença política da Península Ibérica, um novo arranjo para "Grandola Vila Morena" - a canção-senha da revolução de Portugal há 11 anos passados. Carla Bley tocou piano e escreveu os arranjos e todos os componentes da banda estão de um ou de outro modo associados a esta plataforma estético-política: o trompetista Don Cherry (que toca num instrumento de plástico, formato pequeno), o baterista Paul Motian (companheiro de Haden no quarteto de Keith Jarret), Dewey Redman (tenorista vanguardista, ex-membro do grupo de Elvin Jones) mais Sharon Freeman (trompa), Mick Goodrik (guitarra), Jack Jeffers (tuba), Michael Mantler (trompete normal), Jim Pepper (sax/flautista), Steve Slagle (sax-soprano, clarineta/flauta) e o trombonista Gary Valent. A contracapa do disco é mais esclarecedora do que a capa (somente com os nomes dos artistas): um político quadro pintado por Célia, uma refugiada salvadorenha. Entre figuras de gente estendida, soldados, helicóptero e crianças está escrito: "Não à intervenção norte-americana; ianque invasor, fora de El Salvador - nosso único crime é que somos pobres / Estamos cansados das balas enviadas por Ronald Regan".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
27
10/03/1985

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br