Login do usuário

Aramis

O operário em construção

"De fato, como podia Um operário em construção compreender por que um tijolo Valia mais do que um pão? Tijolos ele empilhava Com pá, cimento e esquadria Quanto pão, ele o comia ... Mas fôsse comer tijolo!" ("Operário em Construção", Vinícius de Moraes, 1953). xxx Antes de Lucas (José Maria Santos) entrar em cena ouve-se "Pedro Pedreiro" (1964), uma das primeiras músicas de Chico Buarque de Hollanda: Ao final, é "Construção" (1973), do mesmo autor, que marca, sonoramente, o encerramento do pequeno ciclo da vida, paixão e morte de um operário da construção civil, em qualquer parte deste País, que morre não "atropelado, atrapalhando o tráfego" mas de tristeza pela derrota do selecionado brasileiro numa decisiva partida da penúltima Copa do Mundo (1974). Partindo de um fato real - registrado nos jornais de São Paulo a 28/7/1974, sobre a morte do pedreiro José Ribeiro, 35 anos, [morador] em Guarulhos, por desgostos devido a derrota da equipe Canarinho, o dramaturgo paulista Carlos Queiroz Telles desenvolveu uma peça das mais importantes da atual dramaturgia brasileira. Sucesso nas montagens em São Paulo - com Antonio Fagundes (o hoje famoso "Cacá" da telenovela "Dancin Days") e Rio de Janeiro, desde sexta-feira em cartaz, temporada prevista de duas semanas) chega agora ao Paraná, em montagem trabalhada, honesta e vigorosa de José Maria Santos, 43 anos, 25 de teatro e sobre o qual não nos cansamos de afirmar: trata-se do mais profissional de nossos homens de teatro. MÃO DE OBRA - Entre outros méritos o texto de Carlos Queiroz Telles, tem o de devolver a dramaturgia brasileira um personagem proletário - um simples pedreiro da construção civil e aproximando a temática do futebol. E justamente, o futebol, apesar de todo o carisma que exerce sobre 100 milhões de brasileiros, é um tema praticamente virgem no teatro (como no cinema, música e literatura) em nosso País. Exceto "Corínthians, Meu Amor" (1969, de Cesar Vieira) e, principalmente, "Chapetuba Futebol Clube" que Oduvaldo Viana Filho (1936-1974) escreveu em 1957, praticamente nada mais de expressivo existe na relação teatro-futebol. Aliás, a pobreza do futebol na literatura brasileira foi salientado recentemente por Milton Pedroza no artigo "Presencia del futbol en la literatura brasileña (Revista de Cultura Brasileña, junho/78, Madrid, editado pela Embaixada do Brasil na Espanha). Pesquisando exaustivamente, Pedroza não localizou mais do que 50 autores que, direta ou indiretamente, trataram de temas futebolísticos em seus textos. Nas artes plásticas, só mencionou dois pintores que se voltaram a esta temática: Aldemir Martins e Newton Navarro. Assim, Carlos Queiroz Telles, 40 anos, poeta e dramaturgo, que nesta década vem se mostrando um dos mais férteis autores (três peças, em 72: "Frei Caneca", "A Semana", "A Viagem"; quatro em 75; "O Jogo do Poder", "Porandulas Populares", "O Processo de Joana" e esta "Muro de Arrimo"), tem sabido sentir os tema populares, dos deserdados da sorte, como grandes personagens de seus textos: a prostituta Marly Emboaba, que recentemente vimos em vigorosa interpretação de Marilise Saeussering e agora este Lucas, de profissão pedreiro, torcedor fanático de futebol, que construindo um murro de arrimo, no alto de um edifício, vai aguardando o grande momento da decisiva partida de futebol. A peça toda foi construída no espaço que separa a chegada do pedreiro na obra ao início do jogo, possibilitando ao personagem criar todo um clima de angústia, expectativa e esperança, com humor, realismo e mesmo desespero. Tratando-se de um monólogo, que geralmente oferece grandes riscos ao intérprete, podendo cair facilmente na monotonia e mesmo irritação para o público, Queiroz Telles sobre, inteligentemente, encontrar soluções capazes de dar uma grande dinâmica a um texto que poderia ficar estático e cansativo. Aliás, a grande experiência que José Maria Santos adquiriu no teatro, trabalhando em monólogos - como em "Lá" de Sergio Jockymann, que apresentou no Sul do Brasil durante cinco anos, é uma das razões que o credenciam, como poucos, a conseguir extrair de "Muro de Arrimo" a dimensão que poucos artistas conseguiriam. Embora, naturalmente, nervoso na noite de estréia, José Maria Santos é um profissional experiente e competente que, a proporção que a temporada for se desenvolvendo irá por certo, enriquecer o personagem, dando uma atualidade (com alguns "cacos" bem lançados) e aprofundamento social-político que necessita ser explorado. Mesmo que Queiroz Telles ao escrever a peça há 3 anos passados, não tenha tido como preocupação primeira o dimensionamento político da condição social de um operário da construção civil, justifica-se que nesta remontagem Lucas busque dar um alcance maior, com reflexões, questionamentos e colocações apropriadas a época, em que vivemos. José Maria Santos buscou desenvolver em "Muro de Arrimo" uma direção coletiva: embora dividindo com um grande amigo, Irineu Adami, veterano ator amador, as idéias básicas, aceitou sugestões de vários colegas, buscando criar uma encenação aberta - que pretende manter dinâmica, com as transformações e alterações que julgar oportunas ao longo das diversas temporadas que pretende fazer em Curitiba e, principalmente, no Interior. A colocação de um operário em cena, falando dos problemas de seu dia-a-dia, de seus pequenos sonhos e alegrias, das esperanças (comuns a tantos milhões de brasileiros) de ver o nosso selecionado vencer nos gramados europeus, dá a "Muro de Arrimo" as conotações de um teatro popular sem ser panfletário, capaz de encontrar uma grande identificação junto as platéias mais simples - o que nem sempre os teóricos cepeceanos obtiveram. Por isso, é interessante que José Maria Santos se volte aos sindicatos da construção civil e mesmo aos clubes de futebol, motivando seus integrantes a assistirem a peça, participarem mesmo de debates que somente poderão enriquecer a José Maria, como intérprete de um homem do povo que, por mais de uma hora, num andaime, constrói um muro de arrimo e reflete sobre o seu mundo cinzento mas que, no momento, tem as esperanças depositada nos pés de 11 jogadores de futebol. Encenado já em Buenos Aires e Paris, com boa repercussão da crítica e êxito de público, "Muro de Arrimo" não se restringe a uma realidade regional. Ao contrário, o personagem Lucas (na França chamado "José"), tem uma grande dimensão, como ser humano e membro da comunidade, tornando a peça de Queiroz Telles um espetáculo vigoroso, que se não adquire o sentido revolucionário que muitos poderiam exigir, não permanece, entretanto alienada e distante. Ao contrário, é um retrato em branco-e-preto de uma realidade próxima de nosso dia, mas que nos passa com indiferença. Só na ótica de homens sensíveis como Queiroz Telles - e quando encenada por profissionais como José Maria Santos - o dia-a-dia, os sonhos, tristezas e esperanças de homens como Lucas soam mais alto e chegam a nossa retina. Obra basicamente pessoal - acumulou a produção, direção e interpretação, "Muro de Arrimo" conta nesta montagem com a ajuda de alguns amigos de Zé Maria: Irineu Adami concebeu o cenário, que pela primeira vez, nos 7 anos de existência do Teatro do Paiol, aproveita a plataforma superior, concebida pelo arquiteto Abrão Assad e que até hoje permanece inútil dentro da estrutura do teatro. Na sonoplastia, Cesar Ney Sarti aproveitou as músicas de Chico Buarque, integrando uma montagem jornalística, com narração do radialista Gilberto Fontoura e participação das vozes de alguns atores da cidade, como Joel de Oliveira (perfeito no "Fritz"), Abilio Motta e até o coronel Xiririca (Alberto de Oliveira), ator lendário dos anos 20 e até hoje um dos mais eficientes funcionários do Guaíra. "Muro de Arrimo" é uma peça brasileira em sua simplicidade, pobreza e mesma rudeza (poucas vezes os palavrões foram tão bem ajustados a um texto). Mas que tem também a poesia do povo, pois embora Lucas, em sua paixão pelo esporte das multidões, não tenha a consciência daquele outro operário - o do poema de Vinícius - no final, pode-se lembrar as palavras com que Moraes encerrava seu clássico como: "E dentro da tarde mansa Agigantou-se a razão De um homem pobre e esquecido Razão porém que fizeram Em operário construído O operário em construção".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
4
24/09/1978

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br