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Aramis

O outro lado da violência na avenida chamada Brasil

No mundo inteiro a gente viu revolução E tem país pobre, tem país rico Guerra civil, luta armada, obsessão Todo mundo sempre defendeu o seu menos paraíso Do Pau-Brasil, o ouro, a cana, o carvão A gente é doce, as mulheres são bonitas (com exceção de uns poucos) É que tem sempre um nó na garganta Quando a paciência se esvai sem leite É a média da margem De pouco tiro e muito coice De algum espiro e de muito "foi-se" É a cabeça no barril É a gang civil Na avenida Brasil ("Guerra Civil", canção tema de Bruno e Reinaldo Nunes, para o documentário "Uma avenida chamada Brasil", em fase de produção). Ao final de "As cores da violência" (Colours, 1988, de Dennis Hopper) muitos espectadores, impressionados com o fato do filme abordar, com realismo, os bairros barra-pesada de Los Angeles - e as guerras entre quadrilhas de traficantes de droga comentavam: - "Se alguém filmasse a Rocinha, com suas guerras de contrabandistas e traficantes, faria um filme ainda melhor". Pois este filme já existe. Ou melhor, está rodado e começa agora a fase de montagem: "Uma avenida chamada Brasil", segundo longa-metragem de Octávio Bezerra - o realizador do excelente "Memória Viva", vencedor de dois prêmios no IV FestRio e, agora, do Prêmio Paulo Emílio Salles Gomes, na XVII Jornada de Cinema da Bahia, como o melhor "trabalho brasileiro de pesquisa histórica, sociológica ou antropológica". No "Jornal da Jornada", um anúncio de um quarto de página anuncia "Uma avenida chamada Brasil" com o subtítulo "Onde a vida não vale nada. Um filme sobre a guerra civil". Após ter realizado o mais sério e importante filme discutindo a cultura nacional - a partir da obra de Aloísio de Magalhães (1927-1982), Bezerra decidiu descer ao inferno das comunidades periféricas da zona norte, no Rio de Janeiro e fazer um documentário contundente. - "É um filme sobre a guerra civil que já foi iniciada. Um filme de horror, do real, do Brasil agora". "Memória Viva", inédito comercialmente (deverá ter uma única projeção no Cine Groff, dentro da mostra dos premiados da XVII Jornada de Cinema da Bahia, programada para a primeira semana de outubro) confirmou o talento de Octávio Bezerra como documentarista - vindo de uma série de curtas, infelizmente a maioria inéditos no circuito comercial. Partindo das idéias desenvolvidas por Aloísio Magalhães, de homem das artes a personalidade pública, Bezerra construiu um grande painel para discussão dos problemas culturais - numa obra de maior validade e que os ilustres secretários de cultura deste Brasil afora, tão pródigos em seus "fóruns" (de discutíveis resultados) deveriam assistir urgentemente. Mais do que o pintor que se transformou em artista plástico e designer, do programador visual e do fundador do Centro Nacional de Referência Cultural, Aloísio Magalhães foi um homem voltado à discussão das questões populares, a partir de pensamentos como este: "Uma cultura é avaliada no tempo e se insere no processo histórico não só pela diversidade dos elementos que a constituem, ou pela qualidade de representações que dela emergem ,mas sobretudo pela sua continuidade". Com um filme que documentou expressões culturais de vários estados, Octávio Bezerra conseguiu sintetizar em uma hora e 23 minutos um dos mais completos ensaios sobre uma questão tão discutida - mas pouco vista claramente. Agora, mesmo com "Memória Viva" ainda inédito no circuito comercial - o que leva Bezerra a fazer pesadas críticas à Embrafilme, especialmente à administração anterior que, em sua opinião, "realmente desmontou a empresa" - ele se voltou a documentar o mundo da pobreza, da violência, da marginalidade ao longo de 30 favelas, às margens da Avenida Brasil. As filmagens iniciaram no dia 21 de abril e encerraram no dia 7 de setembro - "patrioticamente, entre a descoberta e a independência do Brasil", nos dizia Octávio Bezerra em Salvador, na semana passada. Carioca, 42 anos - completados dia 25 de julho, filho de família pernambucana, Octávio é uma pessoa fascinante, de muitos amigos. Daquelas personalidades que impõem respeito, confiança e admiração no primeiro encontro, e que sem abrir mão de suas idéias, sem fazer concessões, sabe conduzir uma conversa, fazer aliados. Esta virtudes o fizeram merecer a confiança dos "donos" das grandes favelas, nas quais conseguiu penetrar com sua equipe, documentando o quotidiano, obtendo depoimentos da maior sinceridade dos que ali vivem. Frisando sempre que não pretendia fazer um filme contra ou a favor de ninguém, mas, sim, exercendo o trabalho de documentarista, Octávio Bezerra confessa que saiu enriquecido desta experiência de, por cinco meses, ter vivido o outro lado das populações marginalizadas. Conheceu e mereceu confiança dos líderes das comunidades - entrevistando inclusive alguns deles, encapuzados para não serem reconhecidos - mas com depoimentos que, até hoje, nunca haviam sido conseguidos. - "Repete-se nas favelas do Rio de Janeiro o coronelato que marca o Nordeste rural, só que com um líder sendo ligado ao tráfico de drogas, ao contrabando, ao crime organizado - mas como uma peça de um esquema muito maior. Em compensação, este líder passa a ser também o que dá proteção e apoio à população marginalizada, num processo social - no qual preenche a falta de assistência do poder público". Lucidamente, Octávio Bezerra aprendeu a ver o lado real das guerras das quadrilhas, das conotações sociais e mesmo políticas - que vão muito além daquilo que as imagens da televisão mostram - com operações de fachada, que, em absoluto, resolvem um problema muito maior e mais importante: as relações dos marginais reais com a população trabalhadora nas favelas, os vínculos de proteção, a violência e a corrupção policial - enfim, um aprofundamento numa questão social da maior voltagem e que, até hoje, teve poucas interpretações honestas. De quase oito horas de filmagens feitas com duas Arriflex em favelas como a do Parque Alegre, Ramos, Roquete Pinto, Acari, Nova Brasília, Morro da Lagartixa, Manguinhos e mesmo Rocinha, Octávio Bezerra colheu imagens e depoimentos sobre meninas de 9 anos que já se prostituem, de assassinos de aluguel que por Cz$ 50 mil fazem o serviço - mas também buscou a palavra dos dirigentes das associações de bairros, das pessoas que acreditam na melhoria das condições de vida. - "Houve momentos emocionantes" - diz Bezerra. "No dia 24 de junho, quando preparava a filmagem de uma festa de São João - tradição rural absorvida nas favelas - houve uma invasão da favela Roquete Pinto por policiais que, na maior violência assassinaram Paulinho Bicudo, que se encontrava ferido e não pôde fugir. Horas depois acontecia outra morte e eu documentei tudo isto - num material impressionante pelo real". A missa por um jovem de 22 anos, vítima de uma overdose, o depoimento da mãe do "Brasileirinho", um garoto de 12 anos, assassinado junto com os também menores Nando e Cassiano, em Niterói, também foram registrados pelas câmaras de Bezerra que, num processo de conquista de confiança das populações marginalizadas - "e mostrando que o meu trabalho era apenas de documentar a realidade" - pouco a pouco foi tendo contribuição espontânea. - "Com isto obtive depoimentos sinceros mas também preservando os que os deram. Isto justificará que certas pessoas apareçam encapuzadas, sem identificação. E caso revele suas identidades serei um homem morto". Os incidentes que Bezerra documentou em 24 de junho, na favela Roquete Pinto, foram manchete de O Dia, primeiro jornal a registrar a rodagem de seu filme - uma produção da Skylight, pertencente ao cineasta Uberto Molo ("Por incrível que pareça" e "Tormenta", já exibidos em Curitiba), que desenvolveu o roteiro original. Sem qualquer financiamento da Embrafilme - apenas utilizando uma unidade administrativa da empresa como escritório de produção - "Uma avenida chamada Brasil" foi rodada com uma equipe mínima - não mais do que 12 pessoas. O fotógrafo foi Miguel Rio Branco, o som de Antonio Cezar e agora, na fase de montagem, edição de Severino Dadá, todos colaboradores habituais de Bezerra. Ao falar de Dadá - que esteve com ele em Salvador, na XVII Jornada de Cinema da Bahia, se entusiasma: - "Dadá é um dos maiores montadores do Brasil, um homem incrível em suas soluções. Se não fosse sua colaboração, me sentiria perdido com a quantidade de material rodado". Agora começa a fase de finalização deste documentário de longa-metragem, cuja trilha sonora junta composições originais, e participação do grupo Reflexo, "O forró de Lampeão" (Lázaro Sampaio) e a música título, da dupla Bruno/ Reinaldo Nunes. Depois de "Memória Viva", achei que deveria me voltar a um outro lado do Brasil. Um Brasil que já vive uma guerra civil de fome, miséria e violência mas que ainda conserva a esperança nos sorrisos das crianças. Pois acredito que a função do cinema é colocar as questões em discussão".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
25/09/1988

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