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O Som do Carnaval (I) - Inflação e futebol nos sambas-de-enredo de 86

Um teste para derrubar o mais entusiástico dos foliões: cantar ao menos uma estrofe de alguma música para o Carnaval de 1986! A primeira resposta é alegar que "não há músicas de Carnaval". O que é uma quase-verdade: excluindo-se os sambas-de-enredo das escolas de samba do Rio e São Paulo que tiveram algumas gravações, praticamente se desconhece a música carnavalesca criada especialmente para este ano. A única exceção - foi a iniciativa da RGE em lançar um lp ("Canta Meu Povo, Sigem), com 12 finalistas de um concurso patrocinado pela Radiobrás - Funarte - Riotur, e que trouxe, entre as poucas novidades, "Mangueira não é só empolgação", samba de Paulo Soledade, 67 anos, paranaense de Paranaguá mas desde o final dos anos 30 longe do Paraná. Emilinha Borba (Emília Savana da Silva Rocha), 63 anos, que dividia com Marlene (Vitória Boniautti, 62 anos) a liderança carnavalesca dos anos 40 e 50, não só ganhou a faixa de abertura do lp "Canta Meu Povo" - com a marchinha "Rainha de Sabá" (que traz como autores nada menos do que Adolpho Bloch e Carlos Heitor Cony, mais Carlos Cruz), como também saiu em compacto simples, com outra música destes mesmos autores - o frevo "Ai Meus Sais". Entretanto, raras têm sido as emissoras a divulgarem as marchinhas sambas ou frevos e "Canta Meu Povo", assim como em Carnavais passados também algumas tentativas de fazer renascer a música carnavalesca fracassaram. E durante décadas, por esta época, apareciam de 200 a 500 composições carnavalescas, em gravações de 78 rpm que obtinham a maior promoção radiofônica, enquanto a antiga Sbacem - Sadembra distribuía grossos volumes com as partituras das composições aos chefes de orquestras e conjuntos, para executarem o repertório nos bailes carnavalescos. Hoje, os grupos musicais contratados pelos clubes focam apenas nos standards consagrados dos carnavais do passado, um ou outro samba-de-enredo recente com mais facilidade de ser memorizado e, especialmente, as chamadas músicas de meio-de-ano que acabam sendo incorporadas ao Carnaval. xxx Se desde o final do século XIX a música carnavalesca refletia, geralmente de forma crítica e satírica, os fatos, personagens e coisas de cada ano - e para isto basta folhear os dois volumes do reverencial "O Carnaval Carioca através da Música" de Edigar de Alencar (já em 5ª edição pela Francisco Alves Editora), hoje só nos sambas-de-enredo das Escolas de Samba, seja no Rio, São Paulo, Porto Alegre ou mesmo Curitiba, pode-se encontrar alguns reflexos do comportamento satírico dos sambistas. As críticas aos 20 anos de ditadura - que motivaram ao jornalista Roberto M. Moura um ensaio recém-lançado ("Carnaval - Da Redentora à Praça do Apocalipse", 104 páginas, Jorge Zahar Editora, Cr$ 30 mil) ganharam de Aluísio Machado, Luiz Carlos do Cavaco e Jorge Nóbrega, do G.R.E.S. Império Serrano, um samba-de-enredo capaz de ficar entre os mais populares do ano. Numa linguagem otimista, falando da felicidade do povo e com esperanças no amanhã ("Quero nosso povo bem nutrido/ O País desenvolvido/ Quero paz e moradia/ Chega de ganhar tão pouco/ Chega de sufoco e de covardia"), o samba tem um estribilho facilmente absorvível - e bastante oportuno: Me dá, me dá/ Me dá o que é meu Foram vinte anos que alguém comeu Na segunda parte, o samba do Império Serrano também traz uma mensagem positiva: Quero me informar bem informado/ E meu filho bem letrado Ser um grande bacharel/ Se por acaso alguma dor Que o doutor seja doutor/ E não passe por bedel Cessou a tempestade, é tempo de bonança Dona liberdade, chegou junto com a esperança O G.R.E.S. Portela, que desfila este ano com o samba-de-enredo "Morfeu no Carnaval, a Utopia Brasileira", aparentemente também traz otimismo em seu samba-de-enredo, acreditando na vitória do Brasil no próximo campeonato do Mundo ("Vai, meu time, arrebenta/ Até parece o escrete de setenta"). Entretanto, como o seu próprio tema diz, é tudo ilusão: O índio em sua selva a sorrir/ Feliz nesse torrão Livre do FMI e da poluição/ Como é triste o despertar dessa ilusão Que pesadelo/ Meu Deus, quanta taxa pra pagar É trem lotado, que sacrifício danado Desempregado e com criança pra criar O nosso ouro lá da serra tá pelado Já que está tudo arrombado Deixa o leão se arrumar No País da bola, só deita e rola No País da bola, quem vem com dólar... Buscando uma reconquista de glórias passadas, o G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis, com o samba-de-enredo "O Mundo é uma Bola" puxado por Neguinho da Beija-Flor, volta-se também ao futebol de forma otimista: Pra frente, pra frente/ E a vitória conquistar Com os heróis da nossa seleção/ Vibrantes com o grito popular. xxx Em São Paulo, a Escola de Samba Nenê da Vila Matilde, misturando a passagem do cometa Halley com a realidade nacional, lembra várias preocupações populares: no samba-de-enredo de Armando da Mangueira: Vou torcer pra seleção/ Esnobar a inflação Do salário eu vou gargalhar/ E a juba do leão eu vou cortar. Também num misto de otimismo e utopoia, Walter Babau, Alemão do Vai-Vai e Chuveiro, da Escola de Samba Vai-Vai, no samba-de-enredo "Do Jeito que a Gente Gosta", também trazem uma letra esperançosa: Espero que a Nova República melhore a situação Fazendo valer sua força no combate à inflação Quero ver pulso firme/ Contra a corrupção E um salário justo/ Para toda nação. Num dos refrões, a esperança sempre maior de todos os brasileiros: Jogar no Bicho, Esportiva e Federal Se acerto a Quina faço um Carnaval Outra escola de São Paulo - a "Faculdade de Samba Barroca Zona Sul", sai este ano com um samba-de-enredo ("Foi Assim e Aí Vem Mais") que até os seus integrantes deverão ter dificuldades para cantar - tal a letra enrolada e discursiva, falando em futuro, problemas sociais, jogo de bicho e pretendendo, ao final uma crítica à informática: Até o homem está perdendo o seu valor, já não existe emprego quem trabalha hoje em dia, é robô e computador a inflação e a gasolina, sobem mais que disco voador.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
05/02/1986

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