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Aramis

Olivia e Vania, duas excelentes cantoras

Uma das dificuldades no levantamento anual que se faz em termos de música é apontar as revelações de cada período. Afinal, se houve uma projeção de um determinado artista - cantor, compositor, instrumentista, grupo - não significa que ele tenha aparecido exatamente naquele ano, mas, sim, já vinha trilhando há anos os caminhos artísticos, não sendo, portanto estreante. Apenas é que a tirania da mídia de comunicação não os permitiu aparecer antes. Ainda nesta semana, em que a Associação Brasileira dos Produtores de Discos, promoveu no Rio de Janeiro, a festa de entrega do Troféu Villa-Lobos (1), foram nominadas como candidatas à "Revelação de Cantora", Bebel Gilberto, Dulce Quental, Leila Pinheiro, Tânia Alves e Verônica Sabino. Destas, pelo menos duas - Leila Pinheiro e Tânia Alves - já há mais de três anos haviam feito suas primeiras gravações, a primeira em disco independente e a segunda pela Polygram. Mas só depois de "Verde" (Eduardo Gudim/ Costa Neto) que chegou a finalíssima do Festival dos Festivais, em 1985, é que Leila passou a ser notada. E Tânia teve que fazer também uma longa carreira e chegar ao segundo elepê, pela CBS, para ser lembrada como revelação. Entendemos, revelação os artistas que surgem durante o ano - embora pela falta de promoção fora de suas cidades, seja difícil um julgamento (e reconhecimento maior). Por exemplo, Ná Ozetti, vocalista do grupo Rumo, desde 1985 vem sendo enaltecida como uma das grandes revelações da nova música brasileira mas até agora não se pode ouvir uma gravação com sua voz em solo. Fortuna, que há 3 anos já era colocada por Toquinho em seu belo show, já fez espetáculos solo, tem um disco independente às vésperas de ser lançado, mas é totalmente desconhecida fora de São Paulo. Para a categoria de revelação-87, será difícil tirar a premiação de Vania Bastos, mas esta encantadora paulista de 30 anos de carreira, já tem 12 anos de estrada musical, fez no ano passado o seu primeiro elepê - que devido à falta de matéria-prima, só há dois meses chegou às lojas. Outra cantora-compositora excelente, que muitos talvez só passem a prestar atenção agora é a carioca Olivia Byngton, mas que há 11 anos, com o grupo A Barca do Sol (2), já começava a singrar os mares revoltos da música brasileira, em busca de renovação, fazendo, em 1978, um disco tão inovador quanto imerecidamente esquecido. (Continental, 1-01-404-092). Vania e Olivia, dois exemplos de artistas excelentes, inteligentes e com discos dos mais representativos. Que estão nas lojas, por enquanto, à espera de que as pessoas realmente ligadas ao que há de melhor em nossa MPB, saibam adquiri-los. Logo, estes seus álbuns estarão fora de catálogo, na insensibilidade comercial que condena a tantos produtos de qualidade a serem excluídos para a renovação comercial. A Camerística Olívia - com sobrenome dos mais ilustres - afinal foi um Byngton que fundou a antiga Columbia, hoje Continental, pioneira indústria fonográfica, ligada à música brasileira - e com um nome que a faz, muitas vezes ser confundida com outra talentosa Olívia - a Hime (esposa do compositor-pianista Francis), nascida Leuthrop (filha de Cícero, pioneiro da publicidade no Brasil), Olivia Byngton ainda não foi valorizada devidamente. De uma coerência musical marcante e com uma voz especialíssima, Olivia, desde os seus tempos de integrante do grupo A Barca do Sol, traz uma característica que a diferencia de outras cantoras. Sua voz é afinadíssima, trabalhada, que busca a sensibilidade, o interior, o outro lado das canções. Se isto, de um lado, a faz uma intérprete especial, por outro dificulta um entendimento maior e assim, dificilmente será uma artista popular, capaz de ganhar discos de ouro de vendagem. Mas isto não deve preocupá-la, pois suas apresentações são destinadas a pequenos espaços, para públicos capazes de se ligarem ao seu fio de voz, a harmonia, estrutura e desenhos sonoros que sabe fazer, sempre buscando os melhores instrumentistas e arranjadores. Há dois, numa feliz idéia do produtor Mário Aratanha, um dos mais imaginosos produtores artísticos independentes, Olivia dividiu o belíssimo espetáculo "Encontro", com a suavidade do violão de concertista de Turíbio Santos, o saxofone de Paulo Moura e o piano de Clara Sverner, perpetuado em disco pela Kuarup (KLP-020, digital) e que foi visto, ao menos pela metade - Turíbio e Olivia - no Teatro do Paiol. Aquela havia sido a última gravação de Olivia Byngton, que volta agora com um álbum fascinantemente belo, profundo, que deve ser saboreado aos poucos, com toda a tranqüilidade, para ganhar o devido entendimento ("Melodia Sentimental", Continental, maio/87). Trata-se, de princípio, de um trabalho amoroso - desenvolvido por Olivia e o saxofonista Edgard Duvivier. Daqueles projetos em que a voz e sax se integram com amor e emoção, lembrando, de uma forma revisitada, para estes anos 80, da fase "Sax & Voz", em que a divina Elizeth Cardoso fazia dueto com Moacyr Silva, 69 anos, no qual não apenas a competência do grande instrumentista e maestro mineiro (de Conselheiro Lafaiete) e a ternura de Elizeth se identificavam, mas havia, então, um belo caso de amor entre os dois - refletindo a sonoridade romântica das gravações que ficaram para a história da melhor MPB. E é este encantamento musical que se observa em Olivia Byngton, buscando um repertório extremamente poético, no qual Edgard Duvivier colocou músicas em poemas de Manuel Bandeira ("Estrela"), Thiago de Mello ("Como Um Rio") e até em textos inspirados em Omar Khayan ("Rubayat"), além de, em parceria com Olivia, musicar "Desassossego" de Fernando Pessoa. A busca da poesia musical - preocupação aliás, também da outra Olivia, a Hime (3), fez Olivia Byngton gravar o eterno "Soneto da Separação" de Vinícius de Moraes, musicado por Ronaldo Miranda e ela própria musicar "Clarão", de Cacaso - mais do que um letrista, um grande poeta. O esmero e capricho de Olivia se reflete mesmo numa faixa mais descontraída, como "Secretária Eletrônica" (Lu Medeiros/ Carlos Sandroni), partindo de uma idéia simples e bem-humorada: a mensagem desesperada que o apaixonado deixa na frieza da máquina fria que atende o telefone. Egberto Gismonti, amigo querido e que desde os tempos da Barca do Sol, impulsionou a sua carreira, está presente em "Caravela", com letra de Geraldinho Carneiro. E, completando o álbum, duas homenagens muito especiais: releituras afetivas de dois momentos antológicos de Cartola (Agenor de Oliveira, 1908-1980) - "O Mundo é Um Moinho" e "Acontece"; e numa homenagem aos cem anos de nascimento de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), a redescoberta de uma parceria do grande Villa com a poeta e diplomata Dora Vasconcelos - "Melodia Sentimental", que dá título a este álbum tão terno quanto as palavras desta canção de amor: "Quisera saber-te minha/ Na hora serena e calma A sombra confia ao vento/ O limite da espera Quando dentro da noite/ Reclama o teu amor" A Camaleônica Vania - No caso de Vania Bastos, o termo camaleônica é aplicado no sentido mais positivo que possa existir. Para sintetizar toda a sua capacidade de interpretar, com graça, humor e afetividade, dois clássicos da música americana que o cinema imortalizou - "My Heart Belongs To Daddy" e "Over The Rainbow" - às atualíssimas composições de Arrigo Barnabé, alías um dos responsáveis pela sua projeção musical. O londrinense Arrigo, independente de seu imenso talento musical, tem (justamente por isto) um ouvido clínico extraordinário para detectar grandes talentos. Primeiro foi Tetê Espíndola, depois Eliana Estevão (agora na Itália) e posteriormente Vania Bastos, que com ele dividiram marcantes e vanguardistas espetáculos. Em 1980, cinco anos depois de ter chegado a São Paulo, Vania, paulista de Ourinhos, já estava na banda Sabor de Veneno, de Arrigo - e classificava uma música do próprio, "Diversões Eletrônicas", em primeiro lugar no Festival da TV- Cultura. Em 1981, começou a trabalhar como vocalista na banda Isca de Polícia, de outro vanguardista saído de Londrina, Itamar Assunção. Em 1982, Vania foi backing vocal, do grupo de Rita Lee, mas em 1983 voltaria a atuar com Arrigo, consolidando seu espaço como inovadora cantora, no show e disco "Tubarões Voadores" (Ariola, 1983). Vania acompanhou Arrigo à Europa, apresentando-se em Munique, Frankfurt, Paris e Parma, na Itália e voltou, segura e confiante, partindo para a carreira solo. Nos últimos 3 anos fez uma série de espetáculos no Centro Cultural de São Paulo, Sala Guiomar Novaes (Funarte), Teatro Caetano de Campos (no projeto Adoniram Barbosa), cantando também ao lado de outra excelente cantora da nova geração, Eliete Negreiros, no show para a reconstrução do Teatro Tuca. Casada com um compositor-intérprete igualmente talentoso - (mas injustamente até hoje sem ter conseguido romper a barreira da mediocridade que impede que talentos autênticos tenham sucesso) - o compositor e cantor Passoca (Marco Antônio Vilalba), Vania demorou para chegar ao disco, mas a estréia não poderia ser melhor. Com direção musical de Arrigo e Passoca, integrou-se ao Projeto Bom Tempo, que Eduardo Gudim e Helton Altamn criaram para a Copacabana, no ano passado, mas que, infelizmente ameaça se encerrar com este disco de Vania (4). Jovens instrumentistas se revezam nas diferentes faixas integrando-se ao espírito de criação deste disco, no qual Arrigo mostra diferentes facetas de seu talento, a começar pela curtição da Bossa Nova, com uma feliz parceria com Roberto Riberti (a propósito, agora com seu novo disco, recém-lançado pela Continental), intitulado "O Gato"; já o Arrigo da fase inicial está presente com "Sabor de veneno", enquanto da trilha sonora de "Cidade Oculta" (de Chico Botelho, interpretado por Arrigo) ficou o curioso "Detetive Durão", parceria com Hermelino Nader, este parceiro de Luís Pinheiro na faixa "Kitsch", com letra das mais irônicas ("Nosso amor foi algo kitsch/ Não sobreviveu a Nietzsche/ à leitura heavy metal/ dos beats"). José Miguel Wisnik, professor da Unicamp e compositor cada vez mais identificado à vanguarda musical, é autor de "Zoom", no qual mostra também seu lado de arranjador e pianista. Do marido, Passoca, a suave "O Pardal", enquanto de Eduardo Gudin, outro momento romântico, "Esse Rapaz". Carlos Rennó não só fez "Neblina" (parceria com Otávio Fialho), como a bela versão do clássico "My Heart Belongs To Daddy" de Cole Porter (1891-1964), que será sempre lembrada pela interpretação que Marilyn Monroe (1926-1962) lhe deu em "Adorável Pecado" ( "Let's Make Love", 60, de George Cukor). Como "Eu Sou é do Papai", Vania recria a canção de Porter com toda a sua malícia intrínseca, enquanto que "Over The Rainbow" (Harold Arlen/ E.Y. Harburg), o clássico de Judy Garland (1922-1969) em "O Mágico de Oz" (1939, de Victor Fleming), na versão de Haroldo Campos, tem todo o tom mágico e colorido, que emoldura este suave disco de Vania, tão encantadora hoje, como era a menina Judy há 48 anos passados. Notas (1) A ABPD, este ano, premiou com o troféu Villa-Lobos, não somente os artistas que mais venderam discos (como acontecia anteriormente), mas também os indicados pela crítica, através de um júri de 70 especialistas na área musical - e da qual fizemos parte. (2) Foi em janeiro de 1974, durante o Curso Internacional de Música do Paraná, que trouxe Egberto Gismonti como um dos professores, que aqui se formou o grupo de jovens instrumentista que, por 6 anos, desenvolveria um trabalho dos mais interessantes, com o nome de Barca do Sol, gravando três importantes elepês. O grupo era formado, originalmente por Nando Carneiro (violão), Muri Costa (violão/viola), Jaquinho Morelembaum (violoncelo/violino), Marcos Stul (baixo), Marcelo Costa (percussão), Beto Rezende (percussão/viola) e Marcelo Bernardes (flauta). (3) Olivia Hime produziu álbuns musicando poemas de Fernado Pessoa (Sigla/ Som Livre, 1985) e Manuel Bandeira (Continental, 1987), o primeiro com diferentes intérpretes, o segundo em sua voz - exceto a faixa "Trenzinho Caipira" (Antônio Carlos Jobim e grupo). (4) O Projeto Bom Tempo trouxe, em seu primeiro pacote, outra excelente cantora, Eliete Negreiros, o álbum "Trocando Figuras", com os irmãos Jean e Paulo Garfunkel, mais César Brunetti e Celso Viáfora, além de disco de Vicente Barreto. No segundo pacote, além de Vania Bastos, estavam previstos discos com o grupo Época de Ouro e Elton Medeiros, os quais, infelizmente, até agora não foram produzidos.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
7
31/05/1987

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