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Aramis

Os homens que fabricaram as sombras do Apocalipse

"Oppenheimer foi uma grande inteligência, mas ele tinha também suas fragilidades. "Fat Man and Little Boy" ilumina só sentimentos e experiências das pessoas envolvidas num momento histórico". (Dwight Schultz, ator, comentando sobre o cientista Robert J. Oppenheimer, que interpretou em "O Início do Fim"). Sem pretensões de nostalgia, é lamentável que inexista hoje um cineclube realmente aberto ao debate, dinâmico e atual, para promover uma ampla análise em torno de filmes como "O Início do Fim" (cine Condor, 4 sessões, até quinta-feira). Exemplo de filme que ao tocar em aspectos da história contemporânea traz uma riquíssima gama para debates, "The Shadow Makers" - título que acabou substituindo ao original, "Fat Man and Little Boy", ganha(ria) muito na proporção que possa ser melhor discutido. Talvez, justamente pela falta deste fórum necessário é que a repercussão tenha sido inferior aos dois trabalhos anteriores do diretor Roland Joffe, 45 anos, que igualmente tocaram em temas polêmicos: a guerra no Camboja ("Os Gritos do Silêncio/The Killing Fields", 83) e a igreja e o poder na América latina ("A MIssão/The Mission", 85). Assim como o MacCarthismo permanecia como tabu no liberal cinema americano, também a questão da fabricação e uso da bomba atômica, há quase meio século, nunca antes havia sido abordado num filme na relação direta - entrando, no máximo, como informações paralelas - e quase sempre escamoteadas da realidade. Assim, a coragem de Joffe - que o faz merecer uma comparação ao grego Costa-Gavras ("Z", "Estado de Sítio", "Missing" etc) no uso do cinema como informação/denúncia, é que levaram a Paramount a lhe abrir um generoso orçamento permitindo fazer "O Início do Fim" com amplos recursos. Para isto, obviamente, contou bastante as 7 indicações ao Oscar que "The Killing Fields" obteve há seis anos, inclusive o de melhor filme (perdendo para "Amadeus", mas ganhando os de ator coadjuvante para Haing S. Ngor; fotografia de Chris Menges; montagem para Jim Clarck). "A Missão" não ficou atrás: levou a Palma de Ouro em Cannes e voltou a ser indicado ao Oscar de melhor filme (perdendo para "Platoon", de Oliver Stone), mas Menges bisando com o Oscar de fotografia. Possivelmente se não fossem tais credenciais, não haveria orçamento para uma produção com um superstar na cabeça do elenco - Paul Newman, 65 anos, como o general Leslie Groves, e condições de uma perfeita reconstituição de época - inclusive do laboratório-cidade de Los Alamos, no deserto do Novo México, onde, entre 1943/45, foi desenvolvido o super-secreto Projeto Manhattan, para dar, em apenas 18 meses, aos Estados Unidos o artefato nuclear - que esteve também sendo desenvolvido pelos alemães. Joffe declarou que gosta de "fazer as pessoas viajarem" nas imagens de seus filmes. Viagem ao consciente, seja na brutalidade da guerra no sudeste Asiático ou nas tramas da igreja católica em "A Missão". Desta vez, a viagem que faz é a América, a partir de 1942, quando se ouvia a música de Glen Miller nos jukebox e Franklin Delano Roosevelt (1881-1945) estava na Casa Branca, apoiando o projeto Manhattan, mas cuja utilização seria decidida por seu vice, Harry S. Truman (1884-1972), que tomou posse em 12 de abril de 1945, 94 dias antes da explosão teste no deserto do Novo México da primeira bomba. Duas semanas após, em 6 e 9 de agosto, as bombas chamadas de "Fat Man" e "Little Boy", uma de urânio, outra de plutônio, explodiam sobre Hiroshima e Nagasaki, levando não só a rendição incondicional do Japão (que ainda lutava no pacífico), como abriria uma nova época na história da humanidade - a chamada era atômica. Justamente a história da construção da bomba atômica foi desenvolvida com perfeição no roteiro de Bruce Robinson (que havia já feito o script de "Os Gritos do Silêncio"), sabendo colocar as grandes questões que envolvem a responsabilidade moral dos cientistas que participaram do projeto, o dilema de concluir o artefato (teoricamente desnecessário de ser usado, após a rendição da Alemanha, que não conseguiu aprontar a sua bomba, o que reduziu a tensão que existia anteriormente) e, especialmente, as personalidades de Oppenheimer e do major-general Leslie Groves (1915-1970), definido por Paul Newman, seu intérprete como "O homem sem o qual não haveria a bomba: sua força e decisão fez com que o projeto chegasse ao final". Vilão aparente, Groves é o militar que se dispõe a cumprir uma missão - no caso envolvendo os maiores cientistas do mundo, orçamento que chegou a US$ 2 bilhões e que tinha um prazo certo para ser concluído. Oppenheimer, o grande cérebro do projeto, dividido entre as dúvidas morais, o envolvimento com uma ativista política, Jean Tatlock (Bonnie Bodelia - vista em "Duro de Matar") - que se suicida após ele ser pressionado por Groves a abandoná-la - e a sua esposa, Kitty (Laura Dern). Este enfoque humano, profundo das pessoas envolvidas no projeto é que dá a "O Início do Fim" uma dimensão especial como cinema. Não se trata apenas de um filme biográfico - inclusive porque sua ação se limita aos três anos de desenvolvimento da ação no Manhattan Engineering District (com algumas seqüências em San Francisco e Washington) - Joffe e o roteirista Robinson foram a fundo nos parâmetros éticos, políticos, filosóficos e mesmo sociais que envolveram todo o processo da construção da bomba atômica e de sua utilização. O Japão se dispunha a render-se, através da URSS, mas isto significaria a divisão do país entre as duas potências - o que não era desejado por correntes radicais dos meios militares americanos e, embora não haja indicação no filme, este fato teria ocorrido após a morte de Roosevelt. Oppenheimer, num momento, poderia também ter dado um parecer que levasse o projeto a ser sustado - mas neste momento o seu orgulho de cientista falou mais alto - e mesmo contrariando inúmeros colegas - preferiu levá-lo até o final. Estas e muitas outras questões fazem de "O Início do Fim" um filme que classificamos na categoria de absoluta utilidade pública, para ser visto, pensado, reflexionado e discutido. Independente de seus méritos como cinema - e eles são muitos: o elenco excelente, a direção segura, o roteiro perfeito, a direção de arte de Gregg Fonseca merecedora de um Oscar e maravilhosa trilha sonora de Ennio Morricone, a fotografia de Vilmos Zsimond etc. - "The Shadow Makers" transpõe ao entretenimento. Neste ano em que há o 45º aniversário das explosões em Hiroshima e Nagasaki, ver "O Início do Fim" vale pela melhor aula de história. Pena que seu lançamento em Curitiba, mais uma vez, tenha sido feito sem o menor preparo prévio e não haja condições - como no passado acontecia, nos felizes tempos em que José Augusto Iwersen administrava o cineclube Pró-Arte (e depois cine de arte Riviera), se pensar e discutir um filme que é tão denso e assustador por justamente ter toda uma realidade - e se a ficção houvesse, talvez o temor de nosso mundo - há quase meio século sob a espada de Damocles das potências nucleares - não fosse tão terrível. LEGENDA FOTO - Roland Joffe (xícara de café na mão, à esquerda) dirige uma cena de "O Início do Fim" - o filme sobre a bomba atômica (Cine Condor).
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
19/06/1990

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