Login do usuário

Aramis

Quando um narigão atrapalha o amor (ou as cartas não mentem jamais)

A revisitação de um clássico é sempre um risco calculado. Afinal, há que se ter muita competência e sensibilidade para tomando como ponto de partida um tema/história já consagrado recriar o mesmo clima. Ainda mais quando se trata de uma comédia. Steve Martin, hoje um dos mais admirados atores-comediantes americanos e que graças especialmente a sua interpretação em "Cliente Morto Não Paga" (de Carl Reiner) ganhou imensa popularidade, há muito que desejava desenvolver uma adaptação moderna em torno de um dos mais belos e poéticos textos da dramaturgia francesa, "Cyrano de Bergerac", que Eugene (Alexis Edmond) Rostand (Marselha, 1868-Paris, 1918) escreveu há quase 100 anos (exatamente em 1987) inspirado na vida e amores de um certo Cyrano de Bergerac (Paris, 1619-1655), que ficou famoso pelo tamanho descomunal de seu nariz - tão grande quanto sua sensibilidade poética e habilidade no uso da espada. Ainda há dois anos, numa superprodução de Antônio Fagundes (1), a peça de Rostand ganhou uma esplêndida remontagem em São Paulo, num espetáculo em que a grandiosidade do elenco e dos cenários (o que inviabilizou inclusive qualquer possibilidade de ser apresentada em outras cidades) não retirou aquilo que há de mais importante no texto de Rostand: a poesia (e para isto, fundamental foi a belíssima tradução de Millor Fernandes). Ao se propor a adaptar "Cyrano" para o cinema, atualizando-o como um complexo, embora simpático e estimado, chefe do corpo de bombeiros de uma idílica cidade no norte do Canadá, de nome Nelson, Steve Miller se preocupou em tentar passar a poesia do homem feio (mas charmoso), que um defeito da natureza transforma em uma pessoa diferente - mas que tem a compensação de extrema sensibilidade e bom caratismo. Esta proposta, o roteiro conserva da primeira a última seqüência. Pena que na escolha do diretor, tenha feito a opção pelo australiano Fred Schepisi, cineasta ainda com uma carreira irregular - e que embora tecnicamente competente não tem acertado, a tal ponto que há três anos comprometeu até a maravilhosa Merryl Streep no frustrado e pesadão "O Mundo de uma Nova Mulher" (Plenty), que concorreu pelos EUA no FestRio-85 e já foi lançado tanto nos cinemas como em vídeo no Brasil. Contando com um excelente material na mão, Schepisi não pode (ou soube) trabalhar humoristicamente a atualização de Cyrano como o bombeiro J. D. Bales (Martin), apaixonado por uma loira fascinante, Roxanne (Daryl Hannah, a bela atriz revelada em "Uma Sereia em Minha Vida"), para a qual expressa sua paixão em cartas assinadas como o trapalhão Chris, bombeiro de belo porte mas pouco cérebro. As cartas de amor inflamado, que Bales/Cyrano escreve e envia a Roxanne de seus sonhos - é a clássica cena do terraço, no qual ele no início "dirige" a declaração do apalermado Chris (Rick Rossovich), depois assumindo o seu lugar, possibilitam os melhores momentos da criação literária, com a poesia apaixonada daquelas mensagens que conservam, ao longo de um século, a perenidade deste clássico. A aproximação epistolar, através de cartas das mais sentidas constitui sempre um recurso literário que em suas visões cinematográficas tem sempre dado bons resultados - de um romance de Chris Massie ("Love Letters") levado ao cinema em 1945 por William Dieterle (1982-1972) com Jennifer Jones e Joseph Cotten ("Um Amor em Cada Vida") ou ao recente "Nunca te vi... sempre te amei" (84, Charing Vross Road), de David Jones, que deu o prêmio de melhor ator a Anthony Hopkins, no festival de Moscou-87, e que ainda nem chegou as telas de Curitiba (2), embora previsto para lançamento no cinema I no próximo dia 17 de março. Faltou neste "Roxanne" aquele clima de magia e encantamento que há 38 anos passados, o produtor Stanley Kramer, então no vigor de seus 47 anos, conseguiu dar ao filme roteirizado por Brian Hooker da peça de Edmond Kostand, um script cuidadosamente trabalhado com ajuda de Carl Foreman. O diretor, Michael Gordon (3), deu um tratamento tão magnífico ao drama de Cyrano e sua paixão por Roxanne Robin (Mala Powers, atriz hoje esquecida), que todos os que viram aquela versão de 112 minutos, guardam as imagens (em preto e branco) da fotografia de Frank Planer e a trilha sonora do grande Dmitri Tiomkim. José Ferrer (4), pela sua interpretação de Cyrano, foi tão impressionante que num ano em que concorriam ao Oscar de melhor ator Louis Calher ("The Magnificente Yankee"), William Holden ("Crepúsculo dos Deuses/Sunset Boulevard"), James Stewart ("Marvey U") e Spencer Tracy ("O Pai da Noiva/Father of the Bride") foi o vencedor - na única vez em que obteve uma indicação ao troféu máximo da Hollywood. xxx "Roxanne", por certo, não tinha pretensões tão grandes quanto o original "Cyrano de Bergerac" produzido por Kramer - filme que, se espera, ressurja ao menos no vídeo - em televisão ou tape - para que as novas gerações o conheçam. Comédia bem acabada, com esmerada fotografia de Lan Baker, direção de arte de Jack DeGovia e montagem de John Scott, "Roxanne" tem a valorizá-la uma bela trilha sonora de Bruce Smeaton. No elenco, como Dixie, amiga de Roxanne, uma atriz feiosa mas esplêndida - Shelley Duvaal, favorita de Robert Altman em seus filmes. No elenco de suporte, gente nova - a partir do próprio Chris (Rick Rossovich): John Kapelos, Fred Willard, Max Alexander, Stev Mitleman e Damon Wayans. Steve Martin é a grande presença. Ágil - a partir da seqüência inicial, na qual esgrima com uma raquete de tênis com dois "inimigos" - e divertido, tanto verbalmente (como na seqüência da taverna, em que cria 20 insultos em torno de seu nasal sensual) como na poesia epistolar, sua presença é fascinante - e com um humor digno de outro narigudo famoso - o paulista Juca Chaves. No final - diferente da peça original, com um happy end jamais sonhado por Rostand - uma conclusão: as cartas não mentem e podem fazer o feio parecer belo para quem sabe ver e amar. Notas (1) Produção e atuação de Fagundes, "Cyrano de Bergerac" teve Bruna Lombardi no personagem de Roxanne e Antoine Rovis como Cristiano. Rovis atualmente está no elenco de "À Margem da Vida", de Tennessee Williams, direção de Antônio Abujamra, no Teatro Paiol, São Paulo, em excelente montagem de Antônio Abujamra. A direção de "Cyrano" na montagem produzida por Fagundes foi de Flavio Rangel. (2) "Nunca te vi... sempre te amei" (84 Chaning Cross Road) vem sendo enaltecido pela crítica por sua sensibilidade. Conta a história de Helene Hanff (Anne Bancroft) e seu relacionamento apenas epistolar com um culto livreiro inglês, da Antiquarium Booksellers, 84 Charing Cros Road, Londres. Baseado em uma história real, o filme tem direção de um cineasta ainda pouco conhecido no Brasil: David Jones. (3) Michael Gordon, 79 anos, nunca chegou a ser um nome famoso. Foi vítima do Maccarthismo nos anos 50, o que o fez afastar-se por seis anos (53/59) do cinema. Seu primeiro filme foi "O Oráculo do Crime" (Crime Doctor, 1943) e só retornaria a direção em 1959, com uma comédia de grande sucesso, "Confidências à Meia Noite" (Pillow Talk), com Rock Hudson e Doris Day. Dirigiu depois várias comédias e filmes menores. "Cyrano de Bergerac" é, para muitos, o seu melhor filme. (4) José Vincent Ferrery Contron (8 de janeiro de 1909, Santurce, Porto Rico), começou sua carreira em "Joana D'Arc", ao lado de Ingrid Bergman (1984) e atuou em dezenas de filmes. Tentou também a direção, sem nenhum sucesso - inclusive uma continuação de "Peyton Place" (A Caldeira do diabo). LEGENDA FOTO 1 - Daryl Hannah é a bela "Roxanne", na transposição de "Cyrano de Bergerac" para uma comédia contemporânea. LEGENDA FOTO 2 - Steve Martin é o narigudo que escreve cartas de amor à bela Roxanne em nome de Chris (Rick Rossovich).
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Nenhum
12/03/1988

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br