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Aramis

Radio Talk, a solidão e o desespero estão no ar

Há menos de um mês, um neurótico invadiu com sua camionete uma lanchonete numa cidadezinha do Texas e assassinou 22 pessoas. Foi mais um massacre na escala de crimes brutais e inexplicáveis que vez por outra sacodem a opinião pública internacional e que levam a refletir sobre a violência urbana especialmente nos Estados Unidos. Há algum tempo, outra tragédia havia ocorrido em Oklahoma, também num restaurante - fato que, por três vezes é citado nos diálogos de "Talk Radio: Verdades que Matam" (cine Guarani, 16 e 20h30, até amanhã em cartaz). Poucas vezes um filme abordou com tanta profundidade/atualidade temas como a solidão e o desespero urbano, a intolerância, o radicalismo, a violência de cada um como este que Oliver Stone realizou entre "Platoon" (1986) e "Nascido a 4 de Julho" (1990) - dois outros cortes viscerais no American way of life - em sua relação a violência de cada dia, ambos baseados também em relatos reais. Partindo de um fato que mereceu pequenos registros há 7 anos passados - o assassinato de um comunicador de uma rádio da cidade de Dallas, Texas, Alan Berg, que inspirou um livro-reportagem ("Talked to Deathe: The Life and Muder of Alan Berg", de Stephen Singular) e a peça "Talk Radio", escrita (e interpretada) por Eric Bogosian - o filme que a imbecilidade dos "programadores" (sic) da FUCUCU condenou a um fracasso de público no distante cine Guarani, está entre as obras mais contundentes do cinema americano desta década. Cineasta que sempre se voltou a analisar o comportamento do americano contemporâneo, Stone conseguiu dar ao texto de Bogosian - por ele também roteirizado e interpretado, recriando o personagem que havia feito no teatro de Joe Popp, em Nova York - uma dimensão aterradora. Durante 110 minutos, num cenário (quase) único - o estúdio de uma moderna rádio de Dallas (não por coincidência, a cidade em que em 22 de novembro de 1962, foi assassinado o presidente John Kennedy), um comunicador, Barry Champlain (Bogosian), produtor de um talk show (programa que é muito comum nos EUA, mas que só nos últimos anos começou a ser copiado no Brasil) conduz em ritmo extremamente nervoso um verdadeiro circo de horrores pelo ar. Barry passa o programa dialogando com seus ouvintes, xingando, sendo xingado, numa violência verbal que chega às raias do insuportável e no qual desfilam pelas ondas hertzenianas vozes de neuróticos, solitários, doentes - como o jovem drogado que não diz coisa com coisa, a velhinha que deseja falar da aposentadoria (mas que cruelmente o locutor responde com perguntas a respeito de masturbação e lesbianismo), e o nazista que odeia judeus - pois em seu poder auditivo, Barry pretende a imagem do defensor de minorias radicais, de crítico mordaz, num atropelamento de palavras que levam a exaustão as suas performances de todas as noites. Por trás da imagem este defensor (ou acusador?) público - na verdade um ex-vendedor de ternos que revela agilidade e boa voz ao auxiliar um outro, produtor da mesma emissora - vive também o seu inferno zodiacal, dividido entre a dependência da ex-esposa, Ellen (Ellen Grenne) e da produtora-amante, Laura (Leslie Hope), aos choques com o diretor da emissora, Dan (Alec Baldwin) e ao desejo de conquistar uma audiência nacional - com patrocínio de uma multinacional - mas que exige um controle sobre sua verborragia. Os conflitos vindos do Exterior - os ouvintes, com seus telefonemas patéticos ou agressivos - somados ao desespero íntimo conduzem Barry a um lancinante monólogo final, onde, a exemplo daquela confissão que Lonesome Rhodes (Andy Griffith) fazia em "Um Rosto na Multidão" (A Face In The Crowd, 57, de Elia Kazan) - um dos primeiros filmes a desmistificar os comunicadores eletrônicos (*) - confessa seu desprezo aos ouvintes que lhe garantem um doentio Ibope. Surpreendentemente, após um autêntico kamikaze radiofônico - ao xingar e ofender aos que o escutam - Barry Camplain obtém o resultado oposto: o patrocinador aceita suas condições e a audiência parece duplicar. Só que um final trágico (e que se fazia esperar) - impede que prossiga em seu duelo verbal de todas as noites. Neste final de milênio em que o rádio (e também a televisão) são cada vez mais utilizados para comunicadores buscarem seus espaços políticos - e exemplos não faltam - um filme como "Mentiras que Matam" justificaria uma ampla mesa redonda, reunindo deputados e vereadores que detêm mandatos graças ao seu "prestígio" radiofônico, em confronto a veteranos radialistas, jornalistas, tv-men, psicólogos, professores de comunicação, técnicos de marketing etc., para analisar um fenômeno cada vez mais assustador - a decisão política através de mentiras e verdades eletrônicas. Um filme da dimensão de "Talk Radio", com uma linguagem extremamente nervosa, na qual a fotografia de Robert Richardson utiliza em 80% das seqüências os primeiros e primeiríssimos planos e os diálogos têm um ritmo intenso - mereceria ser discutido e visto por estudantes de comunicação, dentro, inclusive, da cadeira de rádio e televisão. Premiado no Festival de Veneza (melhor ator/melhor roteiro) em 1988, lançado em vídeo pela VTI em janeiro deste ano (embora a visão na tela ampla seja muito mais dinâmica), esta produção modesta, com elenco de nomes desconhecidos do público fica, em nosso entender, como o segundo melhor filme dos que já foram lançados em 1991 em Curitiba - abaixo apenas do atualíssimo "Césio 137 - Pesadelo em Goiânia" de Roberto Pires. Stone, que corajosamente tem cotado em feridas incômodas para a América - o intervencionismo em "El Salvador" (Martírio de um Povo) e no Vietnã ("Platoon", "Born at 4 July"), o capitalismo selvagem ("Wall Street") e, mais recentemente, o sonho pop dos anos 60 ("The Doors"), mostra em "Talk Radio" as relações das neuroses e solidões urbanas a busca desesperada de uma ponte de comunicação - mesmo que para isto seja necessário chegar a extremos de violência. Nota (*) Baseado em texto de Budd Schulberg, "Um Rosto na Multidão" abordava a trajetória de um marginal que, dotado de extrema facilidade de comunicação, se transforma num apresentador de sucesso em rádio e televisão, revelando-se um tremendo mau caráter. Apesar da importância deste filme, foi exibido apenas 4 dias (11 a 14 de julho de 1957) no antigo Palácio e nunca mais reprisado (mesmo na televisão).
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
20
30/10/1991

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