Radio Talk, a solidão e o desespero estão no ar
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 29 de outubro de 1991
Há menos de um mês, um neurótico invadiu com sua camionete uma lanchonete numa cidadezinha do Texas e assassinou 22 pessoas. Foi mais um massacre na escala de crimes brutais e inexplicáveis que vez por outra sacodem a opinião pública internacional e que levam a refletir sobre a violência urbana especialmente nos Estados Unidos. Há algum tempo, outra tragédia havia ocorrido em Oklahoma, também num restaurante - fato que, por três vezes é citado nos diálogos de "Talk Radio: Verdades que Matam" (cine Guarani, 16 e 20h30, até amanhã em cartaz).
Poucas vezes um filme abordou com tanta profundidade/atualidade temas como a solidão e o desespero urbano, a intolerância, o radicalismo, a violência de cada um como este que Oliver Stone realizou entre "Platoon" (1986) e "Nascido a 4 de Julho" (1990) - dois outros cortes viscerais no American way of life - em sua relação a violência de cada dia, ambos baseados também em relatos reais.
Partindo de um fato que mereceu pequenos registros há 7 anos passados - o assassinato de um comunicador de uma rádio da cidade de Dallas, Texas, Alan Berg, que inspirou um livro-reportagem ("Talked to Deathe: The Life and Muder of Alan Berg", de Stephen Singular) e a peça "Talk Radio", escrita (e interpretada) por Eric Bogosian - o filme que a imbecilidade dos "programadores" (sic) da FUCUCU condenou a um fracasso de público no distante cine Guarani, está entre as obras mais contundentes do cinema americano desta década. Cineasta que sempre se voltou a analisar o comportamento do americano contemporâneo, Stone conseguiu dar ao texto de Bogosian - por ele também roteirizado e interpretado, recriando o personagem que havia feito no teatro de Joe Popp, em Nova York - uma dimensão aterradora.
Durante 110 minutos, num cenário (quase) único - o estúdio de uma moderna rádio de Dallas (não por coincidência, a cidade em que em 22 de novembro de 1962, foi assassinado o presidente John Kennedy), um comunicador, Barry Champlain (Bogosian), produtor de um talk show (programa que é muito comum nos EUA, mas que só nos últimos anos começou a ser copiado no Brasil) conduz em ritmo extremamente nervoso um verdadeiro circo de horrores pelo ar. Barry passa o programa dialogando com seus ouvintes, xingando, sendo xingado, numa violência verbal que chega às raias do insuportável e no qual desfilam pelas ondas hertzenianas vozes de neuróticos, solitários, doentes - como o jovem drogado que não diz coisa com coisa, a velhinha que deseja falar da aposentadoria (mas que cruelmente o locutor responde com perguntas a respeito de masturbação e lesbianismo), e o nazista que odeia judeus - pois em seu poder auditivo, Barry pretende a imagem do defensor de minorias radicais, de crítico mordaz, num atropelamento de palavras que levam a exaustão as suas performances de todas as noites.
Por trás da imagem este defensor (ou acusador?) público - na verdade um ex-vendedor de ternos que revela agilidade e boa voz ao auxiliar um outro, produtor da mesma emissora - vive também o seu inferno zodiacal, dividido entre a dependência da ex-esposa, Ellen (Ellen Grenne) e da produtora-amante, Laura (Leslie Hope), aos choques com o diretor da emissora, Dan (Alec Baldwin) e ao desejo de conquistar uma audiência nacional - com patrocínio de uma multinacional - mas que exige um controle sobre sua verborragia.
Os conflitos vindos do Exterior - os ouvintes, com seus telefonemas patéticos ou agressivos - somados ao desespero íntimo conduzem Barry a um lancinante monólogo final, onde, a exemplo daquela confissão que Lonesome Rhodes (Andy Griffith) fazia em "Um Rosto na Multidão" (A Face In The Crowd, 57, de Elia Kazan) - um dos primeiros filmes a desmistificar os comunicadores eletrônicos (*) - confessa seu desprezo aos ouvintes que lhe garantem um doentio Ibope.
Surpreendentemente, após um autêntico kamikaze radiofônico - ao xingar e ofender aos que o escutam - Barry Camplain obtém o resultado oposto: o patrocinador aceita suas condições e a audiência parece duplicar. Só que um final trágico (e que se fazia esperar) - impede que prossiga em seu duelo verbal de todas as noites.
Neste final de milênio em que o rádio (e também a televisão) são cada vez mais utilizados para comunicadores buscarem seus espaços políticos - e exemplos não faltam - um filme como "Mentiras que Matam" justificaria uma ampla mesa redonda, reunindo deputados e vereadores que detêm mandatos graças ao seu "prestígio" radiofônico, em confronto a veteranos radialistas, jornalistas, tv-men, psicólogos, professores de comunicação, técnicos de marketing etc., para analisar um fenômeno cada vez mais assustador - a decisão política através de mentiras e verdades eletrônicas.
Um filme da dimensão de "Talk Radio", com uma linguagem extremamente nervosa, na qual a fotografia de Robert Richardson utiliza em 80% das seqüências os primeiros e primeiríssimos planos e os diálogos têm um ritmo intenso - mereceria ser discutido e visto por estudantes de comunicação, dentro, inclusive, da cadeira de rádio e televisão. Premiado no Festival de Veneza (melhor ator/melhor roteiro) em 1988, lançado em vídeo pela VTI em janeiro deste ano (embora a visão na tela ampla seja muito mais dinâmica), esta produção modesta, com elenco de nomes desconhecidos do público fica, em nosso entender, como o segundo melhor filme dos que já foram lançados em 1991 em Curitiba - abaixo apenas do atualíssimo "Césio 137 - Pesadelo em Goiânia" de Roberto Pires.
Stone, que corajosamente tem cotado em feridas incômodas para a América - o intervencionismo em "El Salvador" (Martírio de um Povo) e no Vietnã ("Platoon", "Born at 4 July"), o capitalismo selvagem ("Wall Street") e, mais recentemente, o sonho pop dos anos 60 ("The Doors"), mostra em "Talk Radio" as relações das neuroses e solidões urbanas a busca desesperada de uma ponte de comunicação - mesmo que para isto seja necessário chegar a extremos de violência.
Nota
(*) Baseado em texto de Budd Schulberg, "Um Rosto na Multidão" abordava a trajetória de um marginal que, dotado de extrema facilidade de comunicação, se transforma num apresentador de sucesso em rádio e televisão, revelando-se um tremendo mau caráter. Apesar da importância deste filme, foi exibido apenas 4 dias (11 a 14 de julho de 1957) no antigo Palácio e nunca mais reprisado (mesmo na televisão).
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