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Aramis

Russos no Jazz. Uma saga com boa música

"O jazz não reflete a decadente arte burguesa; ao contrário, é música revolucionária e manifesta os sentimentos dos negros, o mais sofrido e explorado segmento no capitalismo americano." (Personagem Costa, em "Somos do Jazz".) Mais uma vez um filme surpreendente/envolvente chega de repente, numa programação um tanto obscura e com um público tão reduzido que, mesmo a contragosto, o cinema que o exibe é obrigado a cancelar várias das sessões previstas pela simples falta de espectadores: "Somos do Jazz" (cine Luz, 4 sessões, até amanhã) é atraente por uma série de razões. Em primeiro lugar por trazer uma visão menos sisuda e extremamente descontraída do cinema russo, visto, normalmente, em suas preocupações de realismo e política. Aqui temos um filme leve no qual o diretor Alexandre Chakhnazarov procurou, se não o simples caminho da comédia, uma forma de ficção baseada em uma linguagem moderna considerando um cinema tradicionalmente rígido, estratificado - e mesmo cansativo em sua produção (ao menos aquela que, a duras penas, chega até nós). E justamente para demonstrar esta linguagem moderna de narração e um ritmo vivo e dinâmico, Chakhnazarov escolheu um argumento tão surpreendente quanto agradável: a trajetória da primeira jazz band na União Soviética, logo no início do século. Imagine-se a contradição de um país sofrendo toda a transformação político-social-cultural na teoria marxista-leninista e, musicalmente, um quarteto de instrumentistas propor a música americana - identificada ao capitalismo, aos roaring twenties de uma sociedade totalmente antípoda? Como bem lembrou o crítico Leon Cakoff, da "Folha de São Paulo", responsável indireto pela vinda deste filme ao Brasil (uma cópia foi apresentada há 3 anos na 8ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e no ano passado, F.J. Lucas decidiu adquiri-la para lançamento comercial) que os argumentos de um jovem pianista de jazz na Odessa dos anos 20, diante de uma sisuda banca revolucionária, fazem o intercâmbio do próprio filme e uma espécie de advertência positiva desse gênero musical. Afinal, um moderno filme russo em defesa do jazz e dos seus pioneiros na União Soviética, poderia correr os mesmos riscos da incompreensão e da intolerância por que passaram os seus afáveis personagens. A trajetória do jovem pianista Costa e seus três companheiros - um executante de banjo, um baterista extremamente quadrado em termos sonoros e um saxofonista que havia integrado uma banda marcial nos tempos do Tzar, é colocada dentro de uma espécie de saga do jazz na Rússia. Obviamente que a narrativa não pretende ter um comportamento documental extraída de dados reais - e alguns elementos, inclusive, se confundem. O diretor-roteirista Chakhnazarov preferiu concentrar a história sobre o idealismo dos músicos - entre a nova ordem que se estabelecia e os requintes ainda das lembranças dos tempos czaristas em interiores luxuosos (o hotel em que se hospedam; o banquete de marginais para o qual são contratados, devido à paixão que o líder mantém pelo jazz, rememorando seus anos americanos). Costa (Nicolai Averichkina), o personagem central, ex-pianista clássico, busca levar ao vivo aquela música, nova música, que ouve em discos - "especialmente Scott Joplim", explica, referindo-se ao criador do rag, falecido em 1919 - fazendo com que dois músicos mambembes - um executante de banjo e um de saxofone se unam na aventura. Numa cadeia em Odessa encontram o quarto elemento, um saxofonista nostálgico da banda militar do tzar Nicolau II. Gostoso é acompanhar, ao longo de quase imperceptíveis 85 minutos, a persistência desses ingênuos personagens decididos a fazer com que "a alma fale" numa linguagem musical que, na época, ninguém quer entender. Assim - como tão bem acentuou Cakoff - a euforia do jazz mistura-se à melancolia de quatro virtuosos rebaixados à condição de marginais. São rejeitados tanto pela mais moderna orquestra de Leningrado quanto pela modesta mas já burocrática e intolerante associação de "músicos proletários". A obstinação dos personagens pede a solidariedade que merecem os heróis de literatura juvenil. E, como irônica constatação dos fatos soviéticos, é um conceituado almirante de esquadra, raro amante do jazz, que finalmente avaliza o talento do grupo. Num salto do tempo, ao final, os pioneiros do jazz - já idosos - estão se apresentando num auditório superlotado. Um happy end curioso e crítico - que não deixa de ter um toque meio surreal ainda. Pois, com todo o desenvolvimento musical, o jazz é, ainda, não só na Rússia, mas também em outros países (mesmo em alguns capitalistas) uma música pouco reconhecida. Entretanto, dentro da criação sonora e busca de renovação, há uma emergência de novos sons - que hoje chegam também ao pop-rock (há alguns anos, foi anunciada a edição de uma antologia do jazz soviético em 20 Lps, obra evidentemente que nunca chegou às lojas de nosso País). Dentro da filmografia do jazz - que já passa de 800 títulos, levantados há 14 anos por David Meeker ("Jazz in the Movies", British Film Institut, 1972), "Somos do Jazz" é um filme original, delicioso e extremamente agradável em sua trilha sonora formada por temas musicais dos anos 20. Talvez um jazz quadrado, mas o que se poderia pretender daqueles pioneiros russos? LEGENDA FOTO - Uma surpresa agradável: "Somos do Jazz", um filme russo alegre e simpático. No Cine Luz, até amanhã.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
29/04/1986

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