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Aramis

Sabor (amargo) de Brasil (I)

A exibição simultânea de "Iracema, Uma Transa Amazônica" (cine Groff, hoje último dia em cartaz) e "Eles Não Usam Black-Tie" (cine Plaza, 14, 16, 20 e 22 horas) oferece uma dupla oportunidade de se conhecer dois dos melhores filmes contemporâneos. Não se trata, aqui, de fixar parâmetros geográficos e acrescentar a origem - brasileiros. As premiações internacionais que "Iracema" e "Black-Tie" obtiveram são mais do que atestados de suas qualidades, o reconhecimento de críticos e júris internacionais a duas obras vigorosas, corajosas e atualíssimas. Os cinco anos que separam a realização de "Iracema" de sua aguardada exibição ou os 21 anos que passaram desde que o então jovem Gianfrancesco Guarnieri escreveu a peça "Eles Não Usam Black-Tie" não retiraram, em um milímetro, a atualidade e importância destes dois documentos de nosso País. Poucas vezes, duas obras cinematográficas conseguiram captar com tanta profundidade/seriedade/coragem aspectos de nossa realidade. Tanto um como outro são, sem dúvidas, filmes incômodos. A realidade que incomoda, machuca os olhos e atinge o coração das pessoas mais sensíveis/conscientes. Realizada em pleno período de arbítrio, quando ainda se iludia a nação brasileira com os conceitos de Milagre Brasileiro/Brasil Grande / Pra Frente Brasil, "Iracema, Uma Transa Amazônica" sofreu uma via crucis natural. Financiado por recursos da ZDS, cadeia estadual de televisão alemã, e realizado por dois cineastas alemães - Jorge Bodanski e Wolf Gauer e um brasileiro, Orlando Senna, "Iracema" foi exibido em meia-dúzia de festivais internacionais, conquistou prêmios e elogios mas só há poucos meses, graças aos ventos liberalizantes da Censura, conseguiu sinal verde para ser visto pelo público brasileiro. Assim, é sintomático o aviso que antecede as primeiras imagens do filme - o Rio Amazonas, em cuja solidão navega um pequeno barco trazendo a personagem Iracema (Edna de Cassa) para Belém do Pará. A cidade grande, com suas ilusões e misérias, onde em pouco tempo a moça interiorana se prostitui, encontra um motorista de caminhão, o Tião Brasil Grande (Paulo Cesar Pereio), com que sonha alcançar outras paragens. A viagem pela Transamazônica é a viagem radiográfica para um sonho que não deu certo: ao invés da grandiosidade tão propalada nos anos 70 pelos arautos do milagre brasileiro, as imagens de um Brasil dominado por multinacionais (significativo e curto diálogo onde testas de ferro de um grupo internacional procuram seduzir um cidadão para ser o presidente decorativo de uma empresa), com exploração de milhares de homens, uma política agrária desumana e a prostituição do nível mais humilhante nas beiras das estradas. É compreensível que a censura do ministro Armando Falcão tenha sido tão implacável em perseguir "Iracema". Afinal, em um simples filme de pouco mais de uma hora, é desmistificada toda uma ilusão que, durante mais de uma década, a máquina oficial de informação procurou criar. Aquilo que Caca Diegues faria, com mais poesia e recursos de produção, no igualmente admirável "Bye Bye Brasil" (1979), Bodanski / Senna / Gauer foi antecipado, quatro anos antes, com apenas dois intérpretes centrais - Edna de Cassia (uma sensível atriz, descoberta em Belém do Pará, e que após este filme, lá continua, pobre e esquecida) e Paulo Cesar Pereio, numa atuação continha, sem os excessos que o prejudicam muitas vezes. Em "Bye Bye Brasil" era um grupo mambembe, percorrendo a Transamazônica, brigando com a televisão e tentando oferecer [às] populações mais distantes um pouco de entretenimento ao vivo, distante da ilusão global que descaracterizou os sotaques e massificou o comportamento. Em "Iracema, uma transa amazônica" é o corte visceral, profundo, numa realidade que por falta de (possibilidades de ) discussão ao longo de um período de 15 anos de escuridão, soa até um pouco estranha quando é levantada. Gauer e Bodanski, após "Iracema" rompidos com Orlando Senna, realizariam outro corajoso e importante filme - "Os Muckers", sobre a intolerância racial e religiosa do Interior do Rio Grande do Sul, no final do século passado e, de volta aos problemas da Amazônia, produziriam dois notáveis documentários. "Jari" (já exibido em algumas sessões privadas, em Curitiba) e "Terceiro Milênio", atualmente sendo apresentado na Cinemateca do MAM-Rio de Janeiro. O fato de estarem ligados [à] televisão alemã, que lhes proporciona amplos recursos para seus documentários, não retira de Gauer e Bodanski a importância de, numa forma jornalística, direta, abordarem aspectos de nossa realidade. Em "Iracema" - e o título do filme já não deixa de ser uma ironia a visão paternalista e piegas que o romancista cearense José de Alencar (1829-1877), tratou dos índios em seus romances, como em "O Guarani" (1857), "Ubirajara" (1874), e "Iracema", cuja primeira edição apareceu em 1865 - Gauer / Bodanski / Senna realizaram quase um documentário. Tanto é que 80% das cenas foram rodadas em exteriores, com a participação do povo - seja nas cenas de Belém ou nas povoações ao longo da Transamazônica. Isto dá uma sinceridade e espontaneidade nas imagens, que só não encontra paralelo com o emocionantemente belo "Eles Não Usam Black-Tie", para nós, seguramente, o melhor filme exibido nestes 10 primeiros meses de 1981 em Curitiba, uma obra-prima da maior dimensão e que, felizmente, está encontrando a repercussão devida: domingo à noite, na primeira sessão do Plaza, espectadores voltaram por falta de lugar. Para um filme sério, contundente, que foge de toda a linha pornochanchada que inunda nossas telas, não deixa de ser um fato altamente significativo. Quanto a "Iracema", é lamentável que encerre hoje sua temporada, substituído pela reprise de um comercial filme de terror produzido na Austrália: "Patrick". "Iracema", mesmo com rendas baixas (afinal, dizem que o Cine Groff não busca lucros), merece ser visto por uma faixa maior de espectadores.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
6
14/10/1981

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