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Aramis

Sexo já não assusta ninguém

"Salô ou os 12 Dias de Sodoma", que Pier Paolo Pasolini (1922-1975) concluiu em poucas semanas antes de morrer assassinado, finalmente chega às telas brasileiras. Após duas exibições na Mostra Internacional de Cinema, que o crítico Leon Cakoff organiza em São Paulo, foi adquirido pelo grupo Fama Filmes e teve sua estréia nacional em Curitiba. O filme mais escatalógico e chocante da história do cinema - em que pese em sua visão a crítica de seu autor - foi exibido por um mês (Cines São João / Bristol) e não provocou qualquer protesto. "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorcese, precedido de toda a polêmica, estreou há um mês no Condor (agora está no Lido II) e não atraiu ainda nem cinco mil pessoas - um fracasso de público, ao contrário do que se esperava. "Laranja Mecânica" (Clockwork Orange, 1971), de Stanley Kubrick, proibido por tantos anos - e cuja liberação no Brasil só foi permitida com ridículas bolas pretas sobre os sexos dos personagens nas cenas em que aparecem nus, voltou agora em sua versão original (sem as bolas pretas) e não teve público que fizesse com que o simpático Aleixo Zonari o mantivesse ao menos por duas semanas no Bristol. Há muito que os cines poeira que exibem filmes pornográficos tem rendas baixíssimas - embora as sessões de filmes "hard core" das locadoras, sejam as mais procuradas - especialmente por elegantes senhoras das classes "A" e "B" que, nas suas alcovas, com maridos (ou amantes) curtem o sexo explícito das imagens - antes confinadas nas redes internas de vídeo dos motéis. E lembrar que há 15 anos, quando Cláudio Manoel da Costa começava no jornalismo, a Polícia Federal invadiu o pioneiro 007, nas proximidades do aeroporto, porque um casal "indignado" por ali assistir um filme de sexo explícito, "denunciou" o motel aos federais... Estes dados, aleatoriamente que vêem na memória, comprovam a mudança de comportamento do público - e também do cinema - nesta década e meia, que hoje, em edição especial, o colega Cláudio rememora a propósito de seus 15 anos de jornalismo. O fim da inocência, o cansaço do sexo - Há muito que o cinema perdeu sua inocência - como se pode comprovar na ingênua e bela amostragem "Before Hollywood", organizada pela American Federation of Arts e que chegou a Curitiba (5 a 11 de dezembro, Sala Brasílio Itiberê) graças ao empenho de Valêncio Xavier, diretor do nosso Museu da Imagem e do Som. O cinema espontâneo e mágico, que no início do século era a maior invenção, se transformou a cada década - mas seria nestes últimos 20 ou 15 anos que teria a mudança mais radical. Se a televisão, no início dos anos 50, nos EUA, provocou a grande crise nas salas de exibição - levando o cinema americano, a exemplo do europeu, buscar temas mais adultos e que tivessem uma identificação com o público - foi justamente um cineasta com a alma de criança, Steven Spielberg, que a partir de "ET" - agora a disposição em vídeo - que conseguiu repovoar as salas de exibição. A mágica do cinema - na tela ampla, num aprofundamento uterino que Freud pode explicar em seu sentido de recolhimento - e a propósito, o arquiteto (e cinéfilo) Eduardinho Guimarães tem uma bela tese a respeito - esvaziou-se frente ao conforto do videoteipe. O desconforto, os cinemas sujos e com projeção defeituosa em tantas cidades (em Curitiba, felizmente, tanto a Fama como a CIC preocupam-se com a boa qualidade em suas salas), os ingressos a Cz$ 1 mil (o que está custando a locação de um filme, em vídeo, que pode ser visto por toda a família), e, especialmente, a falta de segurança para se ir ao cinema, são alguns dos fatores que ajudam a explicar o esvaziamento cada vez maior das salas e a queda nas bilheterias. Há, realmente, os cinéfilos - e nestes eu me incluo - que preferem o cinema na tela ampla, mas o fato é que a grande maioria opta cada vez mais pelo vídeo - e a prova disto está no crescente número de locadoras e distribuidoras - com ofertas cada vez mais atraentes em títulos - inclusive filmes de arte ou produções que nem chegam aos circuitos comerciais. Um exemplo disso é "My Beautiful Laundretti", do inglês Stephen Frears, que recebeu o Tucano de Ouro no FestRio-86, e que se encontra a disposição em vídeo - mas que, nos cinemas, ainda nem chegou. O mais badalado cineasta inglês da atualidade, Peter Greenway, premiadíssimo em festivais internacionais, continua inédito nos circuitos comerciais, mas um de seus melhores filmes - "O Sonho de um Arquiteto", há quase três meses já pode ser encontrado em locadoras classe A - como a Disk Tape e a Master, as duas melhores de Curitiba. De quase 150 filmes apresentados na maratona do V Festival Internacional de Cinema, Vídeo e Televisão do Rio de Janeiro (17 a 27 de novembro de 1988), menos de 30% dos programas ali vistos terão distribuição comercial nos circuitos de exibição. Em compensação, em vídeo, alguns já começarão a circular - até em cópias piratas, contrabandeadas do Exterior. Aliás, um Festival Internacional de Cinema é sempre uma (boa) oportunidade para se avaliar o panorama cinematográfico - e a mudança no comportamento do público. Dois dos filmes ali apresentados trazem cenas de sexo oral (quase) explícito, que se não chega a se completar em imagens, tem uma insinuação claríssima - mas que nem por isto provocará qualquer reação. No Criativo "A Cilada de Vênus" (Die Venusfalle), de Robert Van Ackeren - que representou a República Federal da Alemanha, a gatíssima Sonja Kirchberger (a presença mais sexy no Festival, este ano), por várias vezes ajoelha-se defronte ao personagem interpretado por Horst-Gunther Marx e mergulha no sexo oral. Já em "36 Fillette", de Catherine Breillat - recentíssima produção francesa, apresentada numa das mostras paralelas - a ninfeta Delphine Zentout, 14 anos, inferniza a vida de Olivier Parniere - dando uma de virgem depravada, que não consuma o sexo - mas, num certo momento, o satisfaz oralmente. Uma seqüência em que a insinuação é mais excitante do que um filme simplesmente pornô, como tantos e tantos que estão a disposição em vídeo. Apenas dois exemplos - entre tantos - que podem ser alinhavado para mostrar que o sexo não assusta mais. O cineasta italiano Marco Bellochio, que, aliás, fez parte do júri dos filmes de longa-metragem do FestRio-88, há dois anos, colocou a atriz Maruschka Detmers em cenas de sexo explícito na refilmagem de "O Diabo no Corpo". Então, houve alguma polêmica - hoje filmes como "A Cilada de Vênus" ou "36 Fillette" chegam normalmente. Há três anos, também a audácia de Jean Luc Godard em transformar a Virgem Maria numa frentista de um posto de gasolina em "Je Vous Sallue, Marie", provocou que até o presidente José Sarney, então iniciando o esperançoso governo na Nova República, se curvasse as pressões da CNBB e proibisse o filme. Liberado posteriormente, o distribuidor no Brasil, o mineiro Hiltom, Franco, catolicão, bilionário, que comprou a Gaummont e hoje tem na Alvorada um dos maiores circuitos do Brasil, é que não quer exibir o filme - atendendo ao pedido de sua mãe, uma devota matrona mineira. Mas a verdade é que, se lançado agora, "Je Vous Sallue Marie" não atrairia ninguém: quem queria ver já o viu, nas cópias piratas em vídeo. Pensando assim é que nem se cogitou em proibir "The Last Tentation of Christ", que Martin Scorcese realizou com coragem e sensibilidade - e que apesar de algumas ameaças e (ridículos) protestos de velhas beatas defronte aos cinemas, vem sendo apresentado sem maiores conseqüências. E para um público reduzidíssimo, o que preocupa a CIC - anteriormente preocupada com os protestos e expulsões que, segundo alguns, aconteceriam nas salas que exibissem o "blasfemo" filme. Realmente, o cinema (assim como o teatro ou a literatura) é apenas uma das demonstrações de como as coisas mudaram nesta década e meia - de tanto progresso tecnológico e no qual uma nova geração, de cabeça limpa, sem hipocrisia, conseguiu fazer com que também as gerações que a antecederam refletissem melhor em termos de preconceitos estúpidos. O sexo e a religião tem hoje novas conceituações - e a cada um cabe ver como deseja as coisas - de forma que não é proibindo um filme, uma peça de teatro, um livro ou uma canção que se muda uma geração. Ainda bem, pois após o sufoco de 20 anos de ditadura, não daria mais para continuar agüentando a intolerância e a burrice. Pena que outra censura continue: da produção cinematográfica mundial, menos de 20% - e a maioria de péssima qualidade - é que chega ao Brasil. Mas aí o buraco é mais embaixo e fica para um comentário em outra ocasião. LEGENDA FOTO - Sonja Kirchberger e Horst-Gunther Marx em "Armadilha para Vênus" (Die Venusfalle), filme que representou a Alemanha no FestRio: sexo (quase) explícito num filme de alta voltagem.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
15
18/12/1988

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