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Aramis

Solidão em Família (II)

Conflitos familiares não constituem, em absoluto, tema novo no cinema. Ao contrário, uma filmografia a respeito se estenderia por várias páginas e incluiria uma dezena de obras excelentes, cujos realizadores souberam perscrutar corações e mentes do universo familiar - condicionante de grandezas e fraquezas de todos nós, independente de limitações geográficas ou cronológicas. O teatro, igualmente tem recorrido a esta temática - tão rica em expor as fraturas da convivência familiar. Assim, quando se unem dois textos escritos originalmente para os palcos em sua adaptação para o cinema, como no caso de "Noite de Desamor", de Marsha Norman e "Crimes do Coração", de Beth Henley temos uma dupla dose de envolvimento emotivo. As autoras são jovens - Beth Henley tinha apenas 28 anos quando recebeu o Pulitzer por "Crimes of The Heart", que estreou na Broadway, em Nova Iorque, na temporada 1977/78 - mas refletem uma visão amarga em seus textos. Marsha Norman, no "Night Mother" vai mais longe em seu amargor: com apenas duas personagens, a infeliz, epiléptica e abandonada Jessie Eates (Sissy Spacek) e sua estranha mãe, Thelma (Annie Bancroft), disseca sentimentos e frustrações reprimidas ao longo de duas horas - mas que pesam como se fosse uma longa noite de psicanálise de sentimentos - sem dar chance a um entendimento ou a um final feliz. Já Beth Henley, nascida no Mississipi, ex- atriz, em seu "Crimes do Coração" ainda dá alguma chance do público sorrir ao longo das 72 horas em que se passa a ação de seu texto. Entretanto, também há uma lavagem de sentimentos, frustrações, ódios e amores reprimidos entre as irmãs Margrath. O suicídio da mãe quando eram ainda crianças (e o fato dela ter junto enforcado seu gato de estimação, transformando-se em notícia nacional), a instabilidade de Meg (Jessica Lange), que abandonou o apaixonado Doc Porter (Sam Shepard), depois de, involuntariamente, ter provocado uma situação em que ele se tornou semi-aleijado; a solidão de Lenny (Diane Keaton), que devido um problema nos ovários afasta-se do único homem com quem transou e a instabilidade de Babe (Sissy Spacek), que se mantém meio criança, muito ingênua - mesmo casada com um senador do Mississipi, Zackery Botrelle (Beeson Carrol) são alguns dos fatos que vão explodindo ao longo de "Crimes do Coração". Os personagens são cativantes: o velho avô (Hurd Hatfield), o tio Watson (Tom Mason) e até a irritante prima Chick Boyle (Tess Harper) - que ao ser expulsa da casa das irmãs Margrath, a vassouradas, por Lenny, cria uma das seqüências mais divertidas - um dos pontos altos de sua interpretação (merecidamente indicada ao Oscar de melhor coadjuvante). A presença de Diane Keaton, ainda associada a interpretações marcantes em filmes de Woody Allen ou a dramática Theresa Dunn de "A Procura de Mr. Goodbar" (Looking Mr. Goodbar, 1977, de Richard Brooks) chega a sugerir imagens de outro filme de conflitos familiares - o denso "Interiores", homenagem que o então seu marido, Allen, prestou a Bergman - num filme sério, no qual não atuou. Para um diretor estrangeiro (ele é australiano e só está fixado nos EUA há 6 anos) como Bruce Berensford, dirigir três das melhores atrizes do cinema americano, não deixa de ser uma oportunidade especial. Keaton, Jessica Lange (com Meg, a frustrada irmã que tentou a carreira de cantora em Los Angeles) e, especialmente, Sissy Spacek, na frágil Babe, compõe personagens incríveis. Não foi sem razão que aceitara fazer o filme com salários menores do que normalmente cobram (afinal, as três já foram galardoadas com o Oscar), pois um texto como o de Beth Henley não aparece todos os anos. Sam Shepard, mais respeitado como autor do que ator (embora também competente), e que só agora começa a ter seus textos encenados no Brasil ("Fool For Love", já filmado por Robert Altman, será dirigido por Hector Babenco na temporada paulista de 1988) compõe um tipo humano, dividindo com Jessica Lange uma das seqüências mais bonitas - o reencontro de amor, ao ar livre - fotografado por Dante Spinotti com muita felicidade. Um ponto que merece ser realçado tanto em "Noite de Desamor" como "Crimes do Coração": as excelentes trilhas sonoras. Em "Night Mother", David Shire utilizou os solos de violão, com a densidade e economia necessária - ajustando o som apenas em algumas seqüências. Já o francês Georges DeLeRue, que vem sendo cada vez mais valorizado no cinema americano (substituindo Maurice Jarre e Michel Legrand), cria uma terna banda sonora, com temas emotivos de "Crimes do Coração". Filmes como "Noite de Desamor", em seu conteúdo dramático, em seu mergulho nas angústias de uma personagem, assim como "Crimes do Coração" - na visão familiar, de conflitos, amores & desamores de uma família (e não é sem razão que muitos críticos citaram a peça de Checov e mesmo "Hanna e suas Irmãs", de Allen, a propósito) fazem o espectador reconciliar a emoção com a visão estética. Dois filmes de visão obrigatória. LEGENDA FOTO - Jessica Lange, a "Meg" em "Crimes do Coração", em exibição no Itália.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
02/10/1987

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