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Aramis

Um exemplo do melhor cinema documentário

Quem construiu a Tebas de Sete Portas? Nos livros estão os nomes dos Reis. Arrastaram eles os blocos de pedra? (Bertolt Brecht) A epígrafe com um fragmento de um dramaturgo alemão abre "Conterrâneos Velhos de Guerra" é, de certa forma, o ponto de partida ideológico deste contundente documentário: aqueles que construíram Brasília, os candangos vindos do Nordeste, foram expulsos da cidade. - "Com tristeza, vi que meus conterrâneos, os nordestinos, construtores da cidade, foram rejeitados, rechaçados, expulsos do paraíso idealizado por Niemeyer e Lúcio Costa. Uma marchinha carnavalesca - "Você conhece o pedreiro Waldemar?/Se não conhece pois vou lhe apresentar/Faz tanta casa e não tem casa pra morar" - passou então, a me voltar à memória, sempre que pensei em "Conterrâneos..." Com esta declaração à jornalista Maria do Rosário Caetano, do "Jornal de Brasília" - uma das maiores batalhadoras pela divulgação do cinema brasileiro, presença culta e ativa em todos os eventos - Vladimir de Carvalho, de certa forma, dá a idéia básica do que o levou a, do imenso material que dispõe, selecionar junto com o montador Eduardo Leone, 35 anos, professor do curso de cinema da Escola de Comunicação e Artes/USP, os fotogramas para este filme que levou dois anos para ser finalizado. No ano passado, no encerramento do XXII Festival de Cinema de Brasília, foi exibido "Brasília, a última utopia", no qual cinco cineastas apresentaram visões diferentes sobre a Capital da Esperança. Vladimir, com fotografia de seu premiado irmão, Walter Carvalho (João Pessoa, 14/4/1940), realizou o belíssimo episódio de abertura - "A Paisagem Natural", no qual, sem palavras mostrando apenas a terra, fez um verdadeiro hino ecológico em torno de Brasília. Agora, em "Conterrâneos..." povoa esta terra - "com a gente que veio do País de São Saruê" explica, referindo-se a trajetória dos nordestinos que, fiscalizados naquele proibido (por 8 anos) longa-metragem, vivendo a miséria, a partir de 1956 chegaram ao Planalto Central, repletos de sonhos e esperanças na construção "de uma cidade de homens livres/homens iguais". Brasília foi inaugurada na data prevista - 21 de abril de 1960 - e cresceu mais do que devia. Ao seu redor as cidades satélites - Sobradinho, Guará, Sambaia, Ceilândia, hoje com mais de um milhão de habitantes, todas quase favelas gigantescas. No plano piloto ficaram os burocratas, triplicando a população prevista original e a miséria, falta de assistência médica, educação, etc. Compartimentalizaram-se ao redor - longe da propaganda e imagem oficial uma cidade que, agora, pela primeira vez, é desmistificada neste documentário de Carvalho. Embora seguindo uma ordem cronológica, mas evitando cair na historiografia e laudatismo oficial, Vladimir recuperou imagens para aquilo que chama de uma trágica "ópera" (mistura de epopéia e ópera) para mostrar a história daqueles que foram esquecidos - mas que construíram a Capital da Esperança. Como escreveu, emocionada, Maria do Rosário Caetano, o filme abre com o fogo destruindo o cerrado, seguido de uma série de conterrâneos de Vladimir respondendo à pergunta: "Por que vieram para Brasília no primeiro momento?" Fala-se de fome no Nordeste. De vida difícil. De seca e sofrimento. Muito sofrimento. A história vai rolando. O choro brota abundante dos olhos dos espectadores que guardavam na memória momentos pungentes como o do soterramento de operários nos subsolos do Banco Central; o enterro de JK; a transferência, sob cerco policial, dos favelados da 110 Norte (agosto/87) e, por fim, o "Badernaço", a maior rebelião civil de que se tem notícia na cidade. Corajosamente, o filme derruba mitos - inclusive o de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer - ao serem entrevistados sobre uma parte até hoje esquecida da história oficial (como no livro de Ernesto Silva): o massacre de dezenas (ou teriam sido centenas?) de operários nos acampamentos da Pacheco Fernandes no Carnaval de 1959. Vladimir levou anos para encontrar testemunhas dispostas a falarem a respeito e só num jornal editado em Belo Horizonte, o "Binômio", denúncias a respeito. Nem Lúcio Costa, nem Niemeyer gostam de lembrar do massacre. No filme, ao serem perguntados a respeito, mostraram toda a irritação. As "explicações" do historiador oficial de Brasília, Ernesto Silva, soam ridículas. Assim como a "justificativa" do embaixador Vladimir Murtinho para a construção de uma dispendiosa (e supérflua) ponte sobre o lago provoca risos. "Conterrâneos Velhos de Guerra" é um filme para se pensar e refletir. Pena que Valêncio Xavier, diretor do Museu da Imagem e do Som, que tanta ênfase tem dado ao cinema documentário, não disponha de recursos para promover a vinda de Vladimir a Curitiba, para um seminário sobre o cinema do real, acompanhado de seus filmes - pois nada seria mais oportuno do que assisti-los. Também a Prefeitura, cujos técnicos de planejamento e urbanismo deveriam ver uma obra como esta, em outras épocas poderia, eventualmente, patrocinar uma apresentação do documentário de Vladimir. Infelizmente, embora Francisco Alves dos Santos, da Cinemateca, tenha aprendido com Valêncio a prestigiar o nosso cinema, pouco pode fazer: humilhado e desprestigiado na atual infeliz administração cultural, não pode nem viabilizar um ciclo de pré-estréias de filmes brasileiros que havia idealizado com carinho. Em compensação, US$ 20 mil estão sendo pagos para que aconteça aqui um festival para inglês ver: dos quase 50 filmes, entre curtas e longas, que a partir do dia 5 estarão acavalando-se na programação do Ritz, menos de dez têm legendas em português. E tratam de estórias que se passam na Inglaterra, EUA, Irlanda, Irã ou Finlândia. Afinal, o colonialismo cultural ainda é um fato. Pena que a população curitibana tenha que subsidiar estas "promoções" de nossa Fucucu... Felizmente, nada é eterno!
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
28/10/1990

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