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Aramis

Um filme amargo sobre a escravidão dos haitianos

Premiado no Festival de Cinema de Havana no ano passado e o mais impressionante filme exibido durante a XVII Jornada de Cinema da Bahia (Salvador, 8 a 4 de setembro), "Açúcar Negro" tem, finalmente, projeções em Curitiba (Cinemateca do Museu Guido Viaro, hoje e amanhã, 20h30). Seu realizador, o canadense Michel Reigner, veio ao Brasil, a convite de Guido Araújo, diretor da Jornada - e estendeu sua estada a São Paulo, onde "Sucre Noir", apresentado pela Fundação Cinemateca, provocou também grande impacto. Um dos mais importantes documentários já realizados, denunciando a violência contra os direitos humanos, "Açúcar Negro" (16mm, colorido, 57 minutos, legendas em português) mostra a situação de escravidão dos negros haitianos nas plantações de canas das multinacionais na República Dominicana. Apresentado em Salvador, dentro do ciclo "Direitos Humanos no Terceiro Mundo", o filme de Michel Reigner chocou e emocionou todos que o viram - como já havia provocado emoções em outras mostras. Com imagens vigorosas, numa linguagem jornalística, Reigner mostra que a derrubada de "Baby" Doc e seus "Tonto Acoute" do poder no mais atrasado país do mundo, não significou, em absoluto, a libertação de sua população negra. Devido a precariedade da economia do Haiti, milhares de pessoas - homens, mulheres e crianças, são obrigados a trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar, pertencentes a multinacionais, na República Dominicana, país vizinho. xxx Num jornalismo de investigação, realizado com dificuldades devido ao clima de violência (e censura) também existente na República Dominicana, Michel Reigner consegue ao longo de seu filme mostrar toda a miséria e exploração de milhares de pessoas, vivendo nas mais desumanas condições. Apesar de graves problemas sociais em populações de outros países - inclusive os bóias-frias no Brasil - nada é comparável ao que sofrem os negros haitianos, constituindo-se assim este documentário num necessário grito de alerta, indispensável de ser visto (e debatido) por todos que se interessam por questões sociais. Em Salvador, Michel Reigner, 60 filmes já realizados a partir de 1964, nos falou sobre o que levou a se empenhar na realização deste contundente documentário: - "Antiga colônia espanhola, depois francesa, a República Dominicana foi por muito tempo, assim como a Virgínia e o Brasil, o destino de escravos africanos. Mas se a escravatura foi oficialmente abolida em 1948 em todas as possessões francesas, os dominicanos nunca realmente abandonaram e todos os relatórios das organizações aceitas por eles como uma evidência natural". "Exceto uma minoria de intelectuais - diz Michel Reigner - os dominicanos propalam, mesmo inconscientemente, um profundo desprezo pelos negros". A corrupção dos ditadores haitianos, uma pobreza endêmica (uma taxa de desemprego que atinge 65 por cento da população, o desmatamento e o empobrecimento contínuo dos solos, notadamente pela fabricação do carvão, último recurso do camponês para não morrer de fome), a ignorância e o analfabetismo que, por muito tempo, impediram os haitianos pobres de compreenderem a infâmia do tráfico do qual era objeto, permitiram, em seguida, o estabelecimento de uma estrutura de exploração implacável. O mais trágico de toda a situação - e isto fica claro no filme - é que tudo parece sem solução. Não há esperança. As Nações Unidas não fazem nada porque se trata de uma situação decorrente de um acordo entre dois países soberanos (Haiti e República Dominicana). A Cruz Vermelha Internacional está ausente. - "Parece certo - observou o cineasta - que as pressões e os interesses do monopólio do açúcar são mais fortes que todas as súplicas e todos os relatórios das organizações humanitárias". xxx Premiado como melhor filme estrangeiro (documentário) em dezembro de 1987, em Havana, "Açúcar Negro" não é o único filme na carreira de Michel Reigner. Toda sua (imensa) obra volta-se para a abordagem de questões sociais desde a evolução dos países africanos, com ênfase para os da língua francesa, a aspectos cruciais de urbanismo, habitação, agricultura e saúde pública. Helene Osvard, num profundo texto apreciando "Açúcar Negro", analisou a fundo a questão da escravidão dos haitianos neste final de século, fazendo a seguinte colocação: - "A indigência e o medo são os mais eficazes carcereiros, porque as humilhações, os golpes, as exigências, as extorsões, as injustiças jamais denunciadas acabam por minar a energia moral, a capacidade de se revoltar, da mesma maneira que os trabalhos forçados acabam com os corpos". A realidade que "Açúcar Negro" transmite é dolorosa por ser de um fato que acontece em nossos dias - deixando impotentes mesmo as entidades humanísticas mais atuantes. Há exatamente 21 anos, Peter Glenville levava a tela o romance "Os Farsantes" (The Comediants) do inglês Graham Greene, denunciando a tirania de "Papa Doc", ditador do Haiti, numa produção interpretada pelo casal Elizabeth Taylor e Richard Burton no auge de sua fama. Mesmo com todas as concessões comerciais, "Os Farsantes" foi um filme-denúncia, por trazer ao mundo a terrível situação no Haiti - até então esquecido praticamente em sua insignificância geográfica e econômica, mas terrível em sua realidade. Com "Açúcar Negro", o francês Michel Reigner colocou o dedo na ferida e fez um filme-denúncia dos mais importantes, mas que, lamentavelmente, será visto por poucos espectadores - entre os que, neste fim de semana estarão dispostos a enfrentar o desconforto (e a sujeira) na Cinemateca (o filme ali estreou ontem), para conhecer um trabalho dos mais significativos de como o cinema pode ser uma arma política e de denúncia. LEGENDA FOTO - Imagens contundentes de "Açúcar Negro" mostram a escravidão em que vivem os haitianos explorados pelas multinacionais na República Dominicana. As duas únicas exibições acontecem hoje e amanhã na Cinemateca.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
22/10/1988

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