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Aramis

Um filme antropológico

Um dos filmes mais importantes do ano - e a grande sensação na Europa em 1977 - foi praticamente massacrado no Brasil: a cópia de "Pai Patrão" em projeção no cine Plaza (até amanhã, 5 sessões diárias) está em tão péssima qualidade que não são poucos os espectadores que acabam deixando a sala, irritados com o desrespeito para com a obra original. E sabido o fato de que a lei que obriga os importadores de filmes a fazerem cópia em laboratórios no Brasil é uma faca de dois gumes: se por um lado, nacionalísticamente, visa estimular o desenvolvimento técnico de nossos laboratórios (ainda incipientes)99, por outro tem causado a adulteração na qualidade das imagens de centenas de filmes. Stanley Kubrick chegou a interditar as primeiras cópias aqui feitas de "Barry Lyndon", filme que tem na fotografia (premiada com o Oscar) um de seus pontos altos. E por certo os irmãos Paolo e Vittorio Taviani, premiados com a Palma de Ouro no Festival de Cannes-77, obtendo também o prêmio da crítica internacional, tomariam idêntica atitude se assistissem a que foi reduzido o "Padre Padrone" que chega às nossas telas. Mas se o espectador foi tolerante neste aspecto, poderá admirar "Pai Patrão" como um dos mais sérios filmes realizados nos últimos anos: semidocumentário, com um sentido antropológico, a transposição (livre, salientam os autores) para a tela da autobiografia de Gavino Ledda, 36 anos, ex-pastor numa aldeia da Sardenha, analfabeto até os 20 anos e que se tornou, a custa de muito esforço, um destacado lingüista, é um filme que se insere naquela categoria de obras-lições de vida. Se houvesse da parte do distribuidor (Max Hirsch) ou mesmo do exigido preocupação de desenvolver um trabalho junto a professores e estudantes de lingüística, antropologia e sociologia, uma ampla faixa de espectadores poderia ser motivada. Realmente, "Padre Padrone" é uma obra de nível universitário, inserindo-se na categoria do documental-antropológico. Filmado em Siligo, na agreste Sardenha, utilizando ao lado de poucos atores profissionais (e nenhum deles conhecido) rostos anônimos, colhidos entre o povo, os irmãos Taviani, cineastas até então praticamente ignorados no Brasil (embora um de seus filmes, "Os Fora-da-Lei do Casamento" tenha aqui sido lançado, em programa duplo) conseguiram dar uma forte dose de autenticidade às imagens, recriando os costumes rudes e selvagens do Interior da Itália. O drama de Gavino - retirado da escola primária aos 6 anos e obrigado a permanecer na montanha, pastoreando ovelhas, é semelhante a de milhões de outras crianças, não só na Itália mas em tantos países, inclusive o nosso. A rudeza e brutalidade do pai de Gavino (excelente interpretação de Omero Antonutti) embora choque o espectador mais sensível adquire um sentido político, compreendido pelo próprio personagem-vítima, em sua última frase. Aliás, o verdadeiro Gavino Ledda abre e encerra o filme, integrando a realidade a ficção (que reconstitui os fatos), a partir do momento em que entrega ao ator Antonutti o cajado, com o qual adentra na escola primária da pequena aldeia. Propositadamente, os irmãos Taviani não buscaram sofisticar as imagens: elas são duras, desagradáveis às vezes, com um cínico senso de humor (a erótica [seqüência] partindo dos garotos relacionando-se com os animais e chegando a toda aldeia), mas profundas em seu significado. Egisto Macchi, coordenador da trilha sonora, usou, com precisão, a música da Sardenha acoplada à uma balançante valsa de Strauss, que executada no acordeon é responsável por um dos momentos mais líricos. "Pai Patrão" é um filme que merece ser visto por todos que sabem apreciar as obras adultas de um cinema documental, na melhor linha de Joris Ivens ou Robert Flaherty. Lamentável que a fotografia de Mario Masini tenha sido massacrada com as cópias feitas no Brasil.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
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23/09/1978

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