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Aramis

Um lugar no coração para Emma e Murphy

Mais uma vez, ela é mulher que tem que lutar pelo pão nosso da cada dia. Sem um homem ao lado, filho menor para cuidar, enfrentando o machismo, os preconceitos da comunidade e ainda tendo o seu lado feminino, colocado em cheque pelo medo de um novo envolvimento amoroso. Sally Field, 40 anos, volta a encarnar uma personagem simples, humana, corajosa e que tem, naturalmente, toda a empatia. Em "O Romance de Murphy" (Cinema I, até amanhã, 2 sessões), Sally é Emma Moriarty, 33 anos, divorciada, um filho, Jack (Corey Haim), que chega a uma pequena cidade do Arizona para refazer sua vida. A mesma garra e disposição que tinha Edna Spalding, a jovem viúva de "Um Lugar no Coração" (A Place In The Heart, 1984, de Robert Benton), que, ficando viúva, com três filhos menores, decide enfrentar todas as dificuldades e retirar da terra o sustento para sua família. Também a mesma garra da operária Norma Rae (idem, 1979, de Martin Ritt), que se conscientiza da necessidade de lutar pelos seus direitos e tornar-se uma líder sindical. (Todas interpretações de Sally, vencedora do Oscar-80, por "Norma Rae"). Emma Moriarty, Edna Spalding e Norma Rae, se aproximam de algumas outras personagens femininas que têm sido destacadas em filmes de grande força humana, coragem e otimismo. Pode-se mesmo fazer uma relação entre estas mulheres àquelas que Jean Arthur viveu em alguns grandes momentos do cinema americano nos anos 40/50, quando, sem ainda a bandeira do feminismo ter sido levantada pelas Betty Friedmans da vida, já havia uma valorização da mulher. Entre tantos pontos que fazem de "O Romance de Murphy" emocionante, destaca-se a forma com que os roteirista Harriet Franck Jr. e Irving Ravetch, partindo do romance de Max Schott, trabalharam com os personagens. Se Emma Moriaty, em sua garra e independência - mas também fragilidade e busca do amor e da segurança que um bom homem pode representar - é a grande personagem, o caladão e marcante Murphy Jones (James Garner, indicado ao Oscar de melhor ator por esta interpretação), cria também um tipo inesquecível. Viúvo, dono de uma drug-store na pequena cidade do Arizona, disputado como bom partido pelas mulheres ("São dez para cada homem", diz em certo momento), estabelece laços de ternura com Emma e seu filho, Jack, que nem o retorno do ex-marido, Bobby Jack (Brian Kerwin), consegue enfraquecer. Ao contrário, do convívio familiar, de uma integração nas coisas simples, nasce aquela relação que se solidifica ao final após o surgimento de uma personagem que surpreende o espectador. Como em "Deserto em Flor" - visto na semana passada, no mesmo Cinema I - e alguns outros títulos recentes ("Marie", por exemplo), "Murphy's Romance" tem aquela simplicidade universal de seus personagens e o fato da história se passar numa cidadezinha do Arizona não retira sua identificação a qualquer outra parte do mundo. Justamente isto é que faz com que exista este tipo muito especial de cinema, quando fala de gente como a gente (não o complexo "Ordinary People", de Robert Redford), que, através de roteiros precisos, nos quais os personagens são delineados em uma frase, uma seqüência, estabelecendo toda uma dose de sinceridade e beleza humana. Martin Ritt, 67 anos, é um dos grandes humanistas do cinema americano - um aspecto em sua obra que até hoje ainda não foi devidamente estudada. Há exatamente 31 anos, quando, vindo da televisão, estreava com "Um Homem Tem Três Metros de Altura" (A Man is Teen Tall), realizando um hino a amizade, focando o encontro de dois homens - um branco inseguro, temeroso (John Cassavetes, em seu primeiro grande papel no cinema) e um preto, amparado familiarmente, corajoso e que oferece a própria vida para que seu novo amigo possa crescer (uma atuação inesquecível de Sidney Poitier, na época vindo do sucesso de "Sementes da Violência"). A partir de "Um Homem...", Ritt fez muitos filmes, alguns mais bem sucedidos, outros discutíveis, mas sempre marcados pelo lado de humanismo, de mergulho nos sentimentos dos personagens - com momentos emocionantes, especialmente em "Reencontro de Amor" (Pete'n Tillie, 1972), "Conrack" (1974) e, no recente, "Amigos Para Sempre" (Georgia's Girl, 1982). Assim, não nos surpreende que neste "O Romance de Murphy", Ritt tenha, mais uma vez, despido qualquer pretensão maior do que, simplesmente, contar (bem) uma estória de algumas pessoas que procuram uma segunda oportunidade de felicidade: Emma, jovem e sexualmente reprimida pela frustração do primeiro casamento; seu ex-marido, Bobby Jack - que em momento algum chega a ser colocado como vilão, apenas como um sujeito irresponsável e inseguro e Murphy Jones, em sua prosaica segurança, dedicação ecológica, paixão por um velho Ford-1927, é uma espécie de ponto referencial - e para o que contribui a segura atuação de James Garner (pela primeira vez devidamente valorizado como ator), num papel que parece ter sido pensado para o Gary Cooper (1901-1961) dos anos 40. Um filme como "O Romance de Murphy" oferece múltiplos enfoques para análises, especialmente no lado do comportamento dos personagens, do approach que o roteiro e a direção tratam a história e as naturais aproximações com este gênero de cinema despojado, simples e humano que, felizmente, os realizadores (não só americanos, mas mesmo de outros países) não temem abordar: a simplicidade de estórias em que os fatos corriqueiros, do cotidiano, tornam muito mais atraentes do que uma superprodução com lances heróicos e irreais. Observa-se, mesmo, neste cinema que se poderia inclusive de classificar como "retorno a vida comunitária/familiar" - e que inclui mais de uma dezena de títulos - a substituição dos cenários sofisticados pela cozinha e sala de jantar, a humildade dos ambientes, dos guarda-roupas, a valorização da vida em família, enfim, elementos que fazem com que, aos que realmente sabem ver mais do que os simples elementos estéticos, admirem, e emocionem, chegando mesmo as lágrimas em alguns casos, pois, afinal o bom e honesto cinema é para tocar nos sentimentos - e não provocar (apenas) delírios visuais. Todo este mergulho no coração, nos sentimentos, como faz Ritt em "O Romance de Murphy" não retira o excelente acabamento formal, com um elenco excelente, incluindo coadjuvantes e participações especiais, como do co-roteirista Harriet Frank Jr. E da cantora-compositora Carole King, como "Lilly", numa rápida seqüência. A propósito, Carole King, 43 anos, suave cantora, pianista e compositora que surgiu nos anos 60, com canções como "Up on the Roof" e "It's Too Late", criou uma trilha sonora marcante: canções apropriadamente ajustadas ao clima e personagens e suaves passagens no piano (ela é uma segura executante). Também a fotografia do veterano William A. Fraker (cujo filho, atuou como assistente) estabelece as nuanças desejadas, na captação de cenários com toques rurais, e que a cenografia (Rick Gentiz) completa perfeitamente. Enfim, "O Romance de Murphy" fala ao coração e a emoção - dentro de um ajustamento perfeito. Sem chegar a ser uma obra-prima como "Amigos Para Sempre" ou "Um Homem Tem Três Metros de Altura" (até hoje, os melhores momentos de Ritt) é um filme que se assiste com imenso prazer - e que se retém, com saudade, como um belo exemplo de imagens de comunicação humana. Não perca! LEGENDA FOTO - O diretor Martin Ritt (ao fundo) e Sally Fiels, atriz de "O Romance de Murphy": um dos melhores filmes do ano em exibição no Cinema I.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
17
26/05/1987

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