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Aramis

Uma classe roceira do sonho americano

Na primeira seqüência a câmara focaliza uma mulher preparando generosos hamburguers para a família. Em detalhe, o pão, a manteiga, legumes e a carne - numa mostra da qualidade do produto que, logo a seguir é por ela levado ao pai, marido e filho que trabalham na colheita do milho. Em muitas seqüências a câmara volta a penetrar na cozinha e na sala de refeições da casa dos Ivy, numa propriedade rural em Idaho. A família reunida em volta da mesa, tomando café, almoçando e jantando. A mãe, generosa e dedicada, providenciando comida aos membros da família, unidos pelo trabalho. A insistência de centrar no mesmo cenário - a copa/cozinha - de quase 40% da ação de "Minha Terra, Minha Vida" (Lido II, 5 sessões), poderia até dar a impressão de que o argumento foi baseado em uma peça teatral. Mas não foi isto que aconteceu. O roteiro é original - de William D. Wittliff, que, associado a atriz Jessica Lange, produziu este profundo e atual "country", um dos filmes mais interessantes pela temática que aborda. Formando com "Um Lugar no Coração" (A Place In The Heart), de Robert Benton e o inédito (nos circuitos comerciais do Brasil) "The River", uma espécie de trilogia sobre os problemas enfrentados pelos agricultores americanos, "Minha Terra, Minha Vida", tem quase um tom de documentário: a história é linear, simples, sem grandes pretensões: Jewel e Gil Ivy (Jessica Lange/Sam Shepard, marido e mulher também na vida real), possuem uma boa fazenda mas são vítimas da falta de critérios da política econômica do governo Reagan. Endividados, são executados em 30 dias pelo banco - que da casa de crédito comunitária é transformada em uma empresa nacional fria e desumana para com os agricultores que haviam recorrido em busca de financiamentos. Em torno deste tema, Wittliff criou um roteiro enxuto e preciso, ao qual o diretor Richard Pearce deu uma linguagem linear, acadêmica até, mas que cumpre a função-denúncia proposta. Não há glamour nos personagens. Jessica Lange - indicada ao Oscar de melhor atriz por este filme (perdendo para Sally Field, por "A Place In The Heart", onde ela também interpretava uma personagem semelhante) compõe uma admirável Jewel Ivy, 3 filhos, esposa-companheira e corajosa em sua luta final para garantir a posse da terra ameaçada pelo banco. Se Sally Field em "Um Lugar no Coração" se transformava em agricultora (plantando algodão), após o assassinato de seu marido, delegado numa pequena cidade do Interior do Texas, Jewel decide buscar o apoio comunitário para não perder a terra que sua família possui há um século. Enquanto um vizinho, Arlon Brewer (Jim Haynie), também vítima da ganância bancária, suicida-sse, e o seu marido, Gil, frustrado refugia-se na bebida, é Jewel que decide resistir. E esta conscientização pela união em uma causa aparentemente perdida faz de "Minha Terra, Minha Vida" um filme de extrema emoção. Das imagens de uma fartura na mesa - explícitas nas seqüências das refeições, ao final, com a reunificação da família, "Country" tem todos aqueles elementos que poderiam ser classificados de positivos numa análise cristã do filme - incluindo o comparecimento à missa dominical e das orações antes de cada refeição. Mesmo a provocação não é respondida com a violência e há como uma esperança de que Deus interviria para resolver o problema dos agricultores. Mas se Deus não chega, há necessidade de uma organização - mesmo que sem maior estrutura política, capaz de mostrar as dificuldades que os agricultores, nos Estados Unidos, como no Brasil, enfrentam com seu árduo trabalho com a falta de um apoio seguro, tendo os riscos que vão desde as forças na natureza - a tempestade, que logo no início destrói a plantação de milho - a sanha capitalista de bancos que visam apenas o lucro. Algumas aproximações têm sido feitas entre "Minha Terra, Minha Vida" com um clássico do cinema social americano - "As Vinhas da Ira" (Grapes of Wrath), que John Ford (1895-1973) realizou em 1940, com base no romance de John Steinback (1902-1968). Embora a temática tenha pontos comuns - os dramas da população rural, o êxodo provocado pelo capitalismo selvagem - evidentemente que nem Pearce tem a força de Ford, nem Wittliff a garra do Prêmio Nobel Steinback. Isto, entretanto, não diminui em nada a honestidade com que "Country" foi realizado, ao ponto da produção ter sido viabilizada pela própria Jessica Lange, uma das atrizes mais talentosas surgidas nos últimos anos (ironicamente lançada no pastiche "King Kong"), premiada com o Oscar de melhor coadjuvante em 1983 por "Tootsie" (no mesmo ano concorria também a atriz principal por "Francis"), e que voltou a disputar o troféu em 84 (por este "Country") e, neste ano, por sua interpretação da cantora country Patsy Miller em "Uma Lenda, Uma Vida" - previsto para breve lançamento em Curitiba. Jessica compõe uma personagem fascinante, enquanto Sam Shepard - ator e dramaturgo (além de roteirista: "Paris Texas", "Fool For Love"), também está excelente em seu personagem amargurado. Mas é no elenco de suporte que há atuações marcantes: a adolescente Levi Knebel como Carlisle Ivy, Wilford Brimley como Otis e, especialmente, Matt Clark como o gerente do banco Tom McCullen. Pequenos papéis valorizados intensamente por boas interpretações. A trilha sonora, fugindo da linha country, aproveira sensíveis solos de piano, compondo uma moldura sensível a este filme de belos sentimentos e extremamente atual. Um longa-metragem que lembra, para nós, as imagens da "Classe Roceira", que a paranaense Berenice Mendes fez sobre os sem-terras do Sudoeste. Se Berenice tivesse recursos, poderia fazer um longa sobre os nossos agricultores - tão sensível como é Jessica Lange neste seu "Country", onde se vê a outra face de uma América. Menos glamorizada mas mais realista.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
12/06/1986

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