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Aramis

Airto e Flora, num retorno para sempre

Vejo a primeira estrela primeira estrela no Céu até parece que Deus pintou um quadro para a gente olhar (canto de "Missa Espiritual", Airto, 1983) xxx Dona Zelinda Moreira não poderia ganhar um melhor presente em seu 73º aniversário, que comemora hoje. Com antecedência de pouco mais de 30 horas, seu filho, Airto, lhe deu aquilo com que mais sonhava: a oportunidade de, finalmente, aplaudí-lo no palco, ela que, acompanhando à distância sua carreira, fora de Curitiba há quase 25 anos, acostumou-se apenas a ler as notícias a seu respeito e ouvir os seus discos. Na emoção com que, por quase duas horas, acompanhou o show de seu filho, Airto, e de sua nora, Flora Purim, por várias vezes, lágrimas vieram aos seus olhos. Sua irmã, Diva, 68 anos, ao seu lado também não continha as lágrimas. Entre os 1.100 espectadores no auditório Bento Munhoz da Rocha Neto, na noite de terça-feira, dezenas de outras pessoas também estavam emocionadas. Os familiares de Celso Alberti, 29 anos, baterista que agora inicia uma carreira internacional, como músico do grupo de Airto/Flora, os velhos amigos de Airto e até mesmo aqueles que nunca sequer haviam entrado no Teatro Guaíra, como a bela paulista Miriam Meyer, engenheira-química, que, atraída pela fama do show que ali teve uma única apresentação, também chorou, emocionada, quando Flora, cantou "20 Anos Blues" (Suely Costa/Victor Martins), a faixa que lhe valeu, no ano passado, sua indicação ao Grammy (o Oscar do mundo fonográfico). xxx Emoção, Energia, Espiritualidade. Três "E" formando uma pirâmide que fez com que a única apresentação de Airto e Flora, em Curitiba, atingisse o mais alto nível de vibração, com o público acompanhando, de uma forma quase litúrgica, o som que nascia e iluminava o palco do grande auditório do Guaíra, num dos espetáculos mais aguardados de tantos dos que ali têm acontecido desde sua inauguração, há quinze anos. Realmente, Airto tinha razão quando, há 12 dias, no estúdio Vinícius de Moraes, reduzia qualquer explicação teórica sobre as razões pela qual o som que ele e Flora fazem, especialmente nos espetáculos ao vivo, venha conquistando cada vez de forma mais intensa, platéias das diferentes partes do mundo: - É a música de Flora e Airto. Nada mais! Realmente, é uma forma toda especial, clean - exatamente o oposto do Dark tão em moda - que sem desprezar a moderna tecnologia (os teclados de Marcos Silva representam a última geração da Yamaha, ainda em fase de lançamento; a guitarra de Ricardo Peixoto é incrementadíssima), soam da forma suave, harmonicamente agradável - sem aproximarem-se do ensurdecedor rock-jazz fussion. Com sua personalidade própria, mas onde parece haver uma argamassa das maiores vozes negras do jazz (Ma Rainey, Bessie Smith, Billie Holliday) aos recursos acrobáticos-vocais de seus amigos, Bobby McFerrin ou da polonesa Urzula Dudziak (totalmente desconhecida no Brasil), Flora é a cantora-instrumento, como ela própria se define, razão pela qual, por 4 vezes (ou teriam sido 5?), os críticos e leitores da mais respeitada revista de música contemporânea, a cinquentenária "Down Beat", a escolheram "the best male singer", fazendo com que monstros sagrados como Sarah Vaughan, Carmen McRae e, especialmente, Ella Fitzgerald (ídolo de Flora em seus anos dourados de adolescência carioca) passassem para o segundo e terceiro lugares da lista. xxx De princípio, há que se admitir que a música que Airto e Flora fazem não é nem "made for tourist", nem de um imediato consumismo. Ao contrário, o espetáculo vai crescendo aos poucos, com o espectador saboreando a cada momento o gosto perfeito do menu oferecido. A presença de um dos maiores amigos do casal, o coreógrafo Lennie Dalle (foi ele quem pagou a passagem para Airto viajar aos EUA, em janeiro de 1968), na colaboração da tourné brasileira, sem pedir nem um dólar de pagamento, se refletiu na perfeita postura de palco de Flora e Airto, na iluminação criativa, enquanto o som foi perfeito, mostrando inclusive os recursos em estéreo limpo, puro, que Flora consegue na utilização simultânea de dois microfones. A abertura do espetáculo, com Airto, em solo, sugerindo uma volta às origens, numa busca rousseauniana da natureza através de gritos primatas e sons brutos da natureza - e na qual já mostra parte de sua parafernália de percussão - segue-se ao primeiro tema instrumental, "Magicians", parceria Airto-Egberto Gismonti, feita há alguns anos, mas só agora gravada como canção-título do álbum de Flora, lançamento da Concord Records, nos Estados Unidos, neste mês. Interpretando uma de suas novas canções - "Road is hard", cuja letra e título já traduzem muito, Flora entra no palco, peruca avermelhada, elegantíssima e, em questão de segundos começa a dominar sentimentos & corações. "Light as feather", sua parceria com o baixista Stanley Clark, dos tempos do grupo Return to forever é a primeira canção conhecida, a facilitar uma empatia com o público, mas que, já conquistado pela magia e fascínio sonoro, se entrega, dócil como uma criança, ao som que lhe é oferecido, em doses nas quais não há concessões popularescas ou busca de êxitos conhecidos mas, sim, canções criadas dentro da voz-instrumento - que podem ser tanto "Jogral" (José Neto/Filó/Djavan) ou "Esquinas" (Djavan), como o blue intenso de Jimmy Chatchon ("Sweet B. Blue"), "Grooving in closet", "Move it on up" ou "New Flora" - músicas de Airto e Flora, cada uma com uma história, um significado. Generosa e elegantemente, tanto Flora como Airto abrem espaços para seus músicos. Uma americana miudinha, parecendo mais uma dona-de-casa de um subúrbio de Willianstown, do que uma (rara) instrumentista de um difícil e pesado instrumento como o saxofone, Mary Magdalena Feedick (casada, 31 anos, mãe há apenas 4 meses de uma bela criança que a acompanha no Brasil), em toques maravilhosos chega até a lembrar Charlie Parker. Fechando-se os olhos, é difícil imaginar que a carga sonora de um sax perfeito saia de um instrumento assoprado por uma criatura tão, aparentemente frágil, como mrs. Feddick. Aos 34 anos, o carioca Marcos Silva, desde 1979 vivendo nos EUA, tecladista e arranjador, é o "braço esquerdo" de Flora, como ela faz questão de dizer, e, nos teclados o seu som é perfeito, harmonizando-se a guitarra de Peixoto e, dando ao baixista Gary Brown e ao pistonista Jeff Elliott o ajuste certo. Dois outros brasileiros, o curitibano Celso Alberto, 29 anos - na bateria, mas também com incursões na percussão (quando Airto deixa o palco) faz seus amigos e colegas, na platéia vibrarem. Por último, um músico convidado, François (João Francisco de Lima, 41 anos), também mostra, no trombone, seu ajustamento ao grupo - e lembra, aos mais velhos, os tempos em que outro carioca de quilometragem curitibana, Raulzinho, nas frias noites de Curitiba, duelava sonoramente com nossos músicos na Praça Osório, nos fins-de-noite daquelas boites de nossa juventude. xxx Flora é uma vocalise-instrumento. Airto é o instrumento-energia. E o ponto máximo, fazendo o público levantar e delirar, é quando, num solo de pandeiro, faz o grande momento sonoro da noite. Antes, porém, já havia promovido um flash-back aos seus tempos de adolescente, quando antes ainda de ser crooner e baterista da orquestra de Osval Siqueira (um dos muitos músicos presentes na platéia), "cantava na zona", com um repertório dos mais românticos boleros. E o Airto, de voz forte mas suave dos anos 50, mostra que o romantismo ainda existe, ao cantar um belíssimo bolero da dupla Rubens Rada/Hugo Fatoruso, "Sin Salida", que, aliás, é uma das faixas de seu elepê "Latino - aqui se puede", gravado para uma etiqueta de Porto Rico, e só agora sendo lançado em Nova Iorque. Antes de encerrar, uma homenagem de Flora a Milton Nascimento, com seu "Rio Vermelho" (letra de Ronaldo Bastos), numa releitura integralmente nova. Por sugestão de Lennie Dalle, um encerramento duplamente significativo: a espiritualidade conjugada à poesia num dos mais belos momentos da "Missa espiritual", o trabalho que Airto realizou em dezembro de 1983, na Catedral de San Martin, em Colonia, República Federal da Alemanha, e na qual, ao menos uma frase ("a vida depois da morte") sintetiza toda a fé que marca hoje Airto e Flora. Em pé, entre a emoção e o entusiasmo, o público pede mais. Airto, Flora e os músicos apresentam, então outro tema inédito, "Povo do Brasil", um samba de Marcos Silva, e que Flora incluiu em seu último elepê. Com as portas dos camarins abertas - ordem pessoal de Airto aos homens da segurança da Fundação Teatro Guíra - ele, camisa verde, suando felicidade e amor, começa a abraçar tantos amigos, parentes e, mesmo aquelas pessoas que não o conheciam. Por quase uma hora, todos ficaram no Guaíra, sentindo que ali não tinha acontecido apenas um (magnífico e inesquecível) espetáculo musical, mas um (re)encontro da mais alta emotividade. Uma celebração de Som, Paz & Amor.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
28/08/1986

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