Assim não dá!
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 29 de abril de 1988
Um dos orgulhos da Orquestra Harmônicas de Curitiba, fundada há mais de 10 anos por um grupo de entusiastas pela harmônica-de-boca e com dois elepês gravados (um pela Sigla; outro patrocinado pelo grupo O Boticário, lançado no ano passado) é se dizer como a única orquestra de gaita-de-boca do mundo. Muito bem...
Rildo (Alexandre Barreto da) Hora, pernambucano de Caruaru, 49 anos completados no último dia 20, é um dos dois melhores executantes deste instrumento no Brasil (o outro é o carioca Maurício Einhorn, 56 anos a serem completados no próximo dia 29 de maio). Mais do que executante de harmônica, Rildo Hora é compositor com mais de 100 músicas (inclusive sucessos nacionais como "Os Meninos da Mangueira", parceria com Sérgio Cabral), produtor de uma centena de elepês, violonista e arranjador. Enfim, um profissional completo.
Assim, o óbvio ululante - como dizia Nelson Rodrigues - seria que um concerto de um virtuose de harmônica-de-boca, numa cidade na qual se diz existir a única orquestra de harmônica do mundo (sic), atraísse, no mínimo, os integrantes desta orquestra. Inclusive porque, generosamente, Rildo Hora estaria disposto a trocar idéias com os músicos (e eventuais compositores) da terra, num workshop espontâneo.
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Contratado pela Funarte, para integrar o projeto Rede Nacional da Música, Rildo Hora, na harmônica e eu filho, Misael, 20 anos, no piano, apresentaram-se terça-feira, 26, no auditório Salvador de Ferrante. No auditório (750 lugares) menos de 50 pessoas e, ao que aparece, nenhum dos integrantes da orquestra harmônicas de Curitiba.
Rildo e Misael fizeram um espetáculo belíssimo, que iniciou com a peça "Quatro Coisas" que Guerra Peixe (um dos maiores compositores brasileiros, tão importante que Leonard Bernstein fez questão de vir ao Brasil para conhecê-lo) e que incluindo composições próprias de Rildo, além de Luiz Gonzaga, Milton Nascimento e Villa-Lobos, mostrou as infinitas potencialidades do duo harmônica-teclados. Um espetáculo didático, com Rildo falando em torno de cada música. Enfim, uma apresentação que a coordenação do projeto Rede Nacional de Música, colocou dentro de um programa que atinge além de Curitiba, também as cidades de Taubaté (SP), Montenegro (RS), Campo Grande e Dourados (MS) e Cuiabá (MT).
No caso específico dos Hora, o programa iniciou em Taubaté, dia 2, com um público interessadíssimo que lotou o auditório da Escola Municipal de Música Arte Plásticas e Cênicas "Maestro Fego Camargo" e que teve inclusive, presença de autoridades do município.
Em Curitiba, com ingressos a preços simbólicos (e ampla distribuição dos mesmos), nem 50 pessoas foram ouvir o recital. Após o concerto, no camarim, Rildo e Misael ouviram a mais esfarrapada desculpa da coordenadora de área da Secretaria da Cultura que tem a responsabilidade de cuidar do programa da Rede Nacional de Música em Curitiba: a Orquestra Harmônicas, apesar de comunicada, estava ensaiando na noite de terça-feira e por isso seus integrantes "não puderam vir ao concerto"(sic).
Realmente, a Orquestra Harmônicas de Curitiba deve ter compromissos profissionais no Brasil e mundo afora de tal ordem que seu esquema de ensaios a impedem de transferir o ensaio numa noite em que na cidade se apresenta um virtuose do instrumento. Ou será que Rildo Hora, músico há mais de 40 anos, com um trabalho notável não teria nada a mostrar para os nossos virtuoses de harmônica?
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Na semana passada, outro concerto da série da Rede Nacional de Música (mesmo auditório, dia 19), com o Grupo Percussão A2CMR, teve público ainda menor.
Com exceção da notícia publicada na página 2 deste ALMANAQUE na edição de terça-feira, 26, o concerto Rildo/Misael Hora, não teve qualquer outra divulgação. Até o jornalista José Carlos Leite, da assessoria de imprensa da Secretaria da Cultura (e um dos profissionais mais apaixonados por música, área que divulga na "Folha de Londrina") confessava que só havia sabido do concerto algumas horas antes. A imprensa curitibana, em geral, é generosa em divulgar eventos culturais, desde que, obviamente, sejam fornecidas informações sobre a programação. Portanto, era com justa indignação que Rildo lamentava o total esquecimento de seu concerto, "não pelo aspecto pessoal, mas sim pela frustração de não poder mostrar um trabalho instrumental para um público mais numeroso e que, se esperava, mostrasse interesse". Apesar de um cachê baixo, "que aceitamos pelo sentido cultural da promoção" (Cz$ 15 mil), Rildo e Misael viram validade na proposta da Funarte no projeto da Rede Nacional de Música. O que é indesculpável é não haver interesse dos instrumentistas locais em conhecer seu trabalho e a promoção ter passado em tão brancas nuvens.
Computando-se o pagamento dos dois músicos (Cz$ 30 mil), mais transporte e hospedagem, pode-se dizer que houve uma subvenção de mais de Cz$ 1.000,00 por cada espectador presente no auditório Salvador de Ferrante.
Gastar dinheiro público em promoções culturais que não são devidamente promovidas é uma forma de corrupção. Não se pode, no momento em que o Leão ataca impiedosamente os contribuintes, admitir que artistas da dimensão de Rildo e Misael Hora sejam humilhados profissionalmente, ao fazerem apresentações para auditórios desertos.
Vamos parar com brincadeiras que custam caro para os que pagam impostos e merecem mais respeito!
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