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Aramis

Canção de amor à Enluarada Elizeth, divina Cantadeira

"Das cinzas do meu sonho Um hino então componho Sofrendo a desilusão que me invade Canção de amor" (Chocolate / Elianto de Paula, "Canção de Amor", 1949). A primeira vez que falei com Elizeth Cardoso - e lá se vão 30 anos, vestia, pela primeira vez, um smoking. Alugado. E também pela primeira vez entrava no então suntuoso Clube Curitibano, em sua sede na Rua Barão do Rio Branco. Naquele bar estilo inglês, poltronas em couro vermelho, espelhado, a emoção foi imensa ao entrevistar, timidamente, a cantora que já era a Divina. Ela e Ivon Curi haviam vindo a Curitiba para uma daquelas festas que a "Tribuna do Paraná" promovia na época, com muito perfume, patrocinado pelo Luís Gil Caldas - um baiano que sempre foi um dos maiores fãs da cantora. Depois, ao longo destes caminhos, revi Elizeth e até posso dizer que mereci a sua amizade - avalizada pelo padrinho Hermínio Bello de Carvalho, com quem Elizeth fez os seus melhores discos - e que cunhou dois de seus mais belos adjetivos: a "Enluarada" e a "Cantadeira do Amor". Divina - que foi como ela ficou na história de nossa música popular - teve como padrinho o grande Haroldo Costa, embora muitos pensem que a adjetivação partiu de Sérgio Porto - o Stanislau Ponte Preta, que foi o primeiro a publicar a palavra perfeita que caiu como uma luva para a cantora. Ela contou isso - e muito mais - ao longo de um depoimento de quase quatro horas de duração, gravado numa madrugada, após um show no Clube Curitibano, e cuja fita fiz a besteira de deixar para o Museu da Imagem e do Som. Extraviada, até hoje não foi localizado este documento - que se não é o único, é um dos mais sinceros papos dos muitos que a "Divina" deixou registrado ao longo de sua vida. xxx Melhor do que nostálgicas lembranças de Elizeth, a transcrição dos trechos dos poemas que Elizeth deixou gravados em quase meia centena de 78 rpm e elepês, desde quando fez o seu primeiro disco, um 78 rpm na Star, com "Braços Vazios" (Moacir Costa) e "Mensageiro da Saudade" (Ataulfo Alves / José Batista), mas que acabou virando a maior raridade porque, devido a uma falha técnica, a edição foi recolhida. O sucesso viria na segunda gravação, já na Todamérica, há 41 anos, com "Canção do Amor" - seu prefixo musical, que marcaria toda sua imensa carreira. E ao longo de quatro décadas, Elizeth fez as mais belas gravações. Cantou o amor (e o desamor), iluminou caminhos de uma estrada que a fez a maior - entre as maiores - cantoras brasileiras. A grande dama da canção brasileira - única em sua forma, seu estilo, sua personalidade, sua elegância, Elizeth foi para nós, brasileiros - o que duas americanas - Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan significaram para a música americana. Ontem, a biografia de Elizeth mereceu espaço nobre na imprensa, já que gravemente doente há mais de um ano, seu necrológico estava há muito pronto nas editorias dos grandes jornais e revistas, televisão e mesmo emissoras de rádios (em Curitiba, será que algum prefixo vai se lembrar de homenageá-la com ao menos um especial?). xxx De Jacob do Bandolim - que a conheceu numa festa de 15 anos no bairro de Mangueira, e, entusiasmado por sua voz, a levou à Rádio Guanabara, em 18 de agosto de 1936, para cantar "Do Amor ao Ódio" (Jacob / Luiz Bittencourt) no programa "Suburbana", a Hermínio Bello de Carvalho, que a partir de 1964/65 produziria os seus melhores discos e shows, Elizeth sempre teve o astral de ter os melhores músicos, compositores e admiradores de sua voz, de seu talento, fazendo uma das carreiras mais perfeitas de nossa MPB. Dizer que Elizeth só gravou (e cantou) obras primas seria exagero, mas, nesta noite em que choro sua morte, ouvindo-se em quase 40 de seus elepês, numa revisão emotiva de toda sua carreira, é difícil encontrar uma única canção a qual não tenha se dado com todo o amor, toda intensidade. Tanto é que há 23 anos, ao produzir um de seus mais belos álbuns ("A Enluarada Elizeth", Copacabana), com perfeitos arranjos e regência do maestro Lindolfo Gaya, e participações especiais de Clementina de Jesus, Cartola, violonista Codó e Pixinguinha, Hermínio lembrava que fosse gravando uma semi-camerística composição de Villa-Lobos ("Melodia Sentimental", letra de Dora Vasconcelos, composta originalmente para a trilha do filme americano "A Flor que não Morreu /Green Mansions"), um canto de capoeira de Codó ou uma modinha de Maurício Tapajós, Elizeth, em tudo, colocava sua genialidade, envolvendo-se sabe-se lá de que bruxedos a cada momento. "Sei não - dizia Hermínio - mas o que se pensa às vezes é que outra Elizeth Cardoso não se repetirá. Ela é toda uma compacta orquestra numa explosão de sons que nem me atrevo sequer a tentar explicar". Mega-estrela da canção popular, com uma discografia que ainda falta levantar inteiramente, vários discos lançados no Exterior - jamais fez concessões a modismos, sem ter feito fortuna, embora tenha recebido mais de 70 troféus e premiações (inclusive um "Pinheiro de Prata", em Curitiba, há 25 anos), Elizeth - como escreveu o poeta Hermínio - prescindia de medalhas, na medida em que o povo referendou os muitos títulos que tinha - "Divina", "Magnífica", "Enluarada", "Cantadeira do Amor" - sem falar na legião de compositores que revelou, nos ciclos revolucionários que provocou mutações na música brasileira (é importante lembrar que em 1958, com "Canção de Amor Demais", revelava a dupla Tom / Vinícius de Moraes, trazendo no violão a batida diferente de João Guilherme). Cantando Villa-Lobos ou Cartola, Nelson Cavaquinho, Tom Jobim - como o regional de Jacob ou diante de uma sinfônica - interpretando as Bachianas de Villa-Lobos, Elizeth foi a cantora definitiva deste país que - maldita sina - tem suas melhores vozes femininas levadas para o coral celestial, numa espécie de inveja espiritual que nos tira Dolores Duran, Silvinha Telles, Maysa, Elis Regina, Clara Nunes, Dalva de Oliveira, Elsa Laranjeiras, Nara Leão, entre tantas estrelas e vozes queridas. Se os 50 anos de carreira de Elizeth, há quatro anos, foram marcados pela gravação de seu último álbum ("Luz e Esplendor", Arca Discos), seus 70 anos - que seriam comemorados no dia 16 de julho, com todas as festas que mereceria, torna-se uma data triste. Dizer que Elizeth não morre, fica encantada - repetindo Guimarães Rosa - seria o óbvio, pois quem esquecerá a cantora que imortalizou palavras e harmonias tão perfeitas, falando dos "Momentos são / iguais aqueles em que eu te amei / Palavras são/ iguais aquelas que eu te dediquei" Ou, cantando a poesia do filho Paulo Valdez - em parceria com Otávio de Moraes (filho de outra fada de nossa vida artística, a inesquecível Eneida): "Quem ao meu lado esses passos caminhou Este beijo em meu rosto quem beijou? A mão que afaga minha mão Esse sorriso que não vejo, de onde vem Quem foi que me voltou" ("Meiga Presença") Em 6 de outubro de 1986, quando esteve em São Paulo lançando o disco "Luz e Esplendor" e fazendo uma única apresentação no "Palladium", Elizeth estava feliz. Oleny Kruse, em texto no "Jornal da Tarde", dizia: "Não tem medo da idade, da morte, da velhice e parece em absoluta paz consigo mesma. - "Nunca tive medo da morte, estou pronta para enfrentá-la há muito tempo e já combinei com o Baden Powell que, no dia do meu enterro, quero ouvir, se possível com ele próprio, a "Valsa de Eurídice", de Vinícius de Moraes e Baden. Estou sempre em paz com Deus, um amigo que me ilumina a cada minuto".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
09/05/1990

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