Login do usuário

Aramis

Canto negro do mineiro Bosco

Para quem acredita na reencarnação, pode-se até dizer que em outra época João Bosco foi um negro cantador de nostálgicos blues, gospels e labor songs. A facilidade que tem de fazer scats - o canto sem letra - nos transfere a imagem para uma outra galáxia sonora, distante daquela que é a dos nossos dias. Mais do que nunca esta sensação está presente ao se ouvir "Gagabirô" (Barclay, novembro/84), o mais negro de todos os discos de João Bosco - e sem favor, um dos melhores trabalhos fonográficos do ano. [*****] mineiro de Ponte Nova, 38 anos, a música [*****] fronteiras. Um criador de harmonias que [*****] letras perfeitas - no início Paulo Emílio, um casamento (quase) duradouro com Aldir Blanc e [******] permitindo-se a "elogiáveis infidelidades" com poetas como Capinam e Belchior, João Bosco não se prende a regras fixas. Por isto a sua obra é tão borbulhante, sonora e comunicativa lhe dando, merecidamente, um espaço marcante dentro de um universo tão competitivo como é a MPB. "Gagabirô" é um disco de emoção. Da primeira a última faixa. Pensado há muito tempo - desde a época de seu show solo de voz e violão, que o levou a terras e gentes que o fizeram sentir alegria de se transportar a um tempo "onde tudo está por fazer" - como tão bem acentuou Marcia Prates no release do disco. Assim, "Gagabirô" não é um disco limpo, insípido, amorfo. Ao contrário, ele tem o mato, a floresta, a seca, a cachaça, o suor, o mar, o rio e seus afluentes que saem de um lado e se encontram mais adiante. Muitos mundos se encontram neste disco raízes. Quase onomatopaico, "Bate um balaio ou Rockson do Pandeiro" é uma abertura/introdução a tudo o que se espera de um artista que percorre muitas veredas. "Papel Marchê" parceria com Capinam), para nós uma das dez músicas mais bonitas do ano, mostra como o talento pode fazer de simples frases e imagens nem sempre claras, uma proposta de imenso lirismo. Aldir Blanc usa e abusa da liberdade poética em "Preta Porter de Tafetá", construindo uma letra que é o próprio samba do criolo doido em suas tiradas. O poeta Capinam volta a ser o parceiro em "Imã dos Ais", uma homenagem a Ima Sumac (cantora peruana que chegou a se apresentar no Guairinha, há quase 30 anos passados), e ao canto dos índios. "Gagabirô", que dá título ao disco, fecha o lado A . É um canto que nasceu do que Bosco sentiu em Cuba, durante o festival do Varadero - ouvindo o "Canto de Wemba", evocando bruxarias. Isto cruzado com memórias de infância mineira, quando assistia às procissões religiosas, ao povo se arrastando pelas ruas com os passos marcados nas noites escuras iluminadas por velas; alguém então entoava um canto e todos o seguiam. São nomeou esse líder, esse puxador de precedes/pagodes de Gagabirô, uma entidade, um ser dentro das pessoas, um velho, um negro. Outra música negra, forte, á "Tambores" - homenagem a tambores afro-cubanos - o Batá, o Bembé, o Yuka, o Arará e o Yesá. João viaja pela selva e encontra "Senhoras do Amazonas", parceria com Belchior, orquestrada pelo maestro Radamés Gnatalli - um dos muitos talentos convocados pela produção (outros: Cristovão Bastos, Nico Assumpção, Cesar Camargo Mariano, Ivan Paulo). Uma descontração ao estilo de samba-de-enredo não poderia faltar: "Jeitinho Brasileiro" e "Dois Mil e Índio", ambas parcerias com Aldir Blanc. É a sempre presente ironia de Blanc nas letras inteligentes destes dois sambas de grande comunicação - especialmente "Jeitinho Brasileiro", também catipultuado na gravação de Simone. E ironia/malícia atingem seu ponto maior em "O Retorno de Jedai", tão forte que a Censura houve por bem proibi-la para execução em rádio e televisão. "Gagabirô" é um disco marcante e maravilhoso - a começar pela bela capa (criada por J. C. Mello, a partir de bonecos de papel marchê executados por Angela Castro Mucci). Um disco nota 10, de um talento maior da MPB.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Tablóide
27
23/12/1984

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br