Login do usuário

Aramis

A cantoria de Elomar, Xangai e seus amigos

Há tempos que não se ouve notícias de Elomar Figueira de Melo. Este trovador ibérico-baiano deve estar cuidando de seus bodes em suas fazendas no interior de Vitória da Conquista e compondo novas canções belíssimas retraçando a herança mourisca na música nordestina. Seu álbum "Cartas Catingueiras", gravado em 1983 e só vendido pelo reembolso postal (caixa postal 155, Vitória da Conquista, Bahia) continua tão famoso como inédito - pois até hoje ainda não pudemos ouvi-lo e a se basear nas opiniões de críticos como Miguel de Almeida ("Folha de São Paulo") e Carlos Felipe ("O Estado de Minas") trata-se de um dos mais sérios trabalhos deste compositor-intérprete único, em que o verbo é indicativo de profunda cultura clássica, expressando-se numa linguagem dialetal (que exige, muitas vezes um glossário para entender as suas letras), o que o aproxima de Guimarães Rosa. Há anos passados, quando Roberto Santana o revelou no antológico "... das barrancas do Rio Gavião" (Phillips 1973) não tivemos dúvidas em considerar o seu álbum como o melhor do ano. Mais recentemente (1981), a Associação Paulista de Críticos de Arte, o reconheceu em sua importância ao destacar o álbum duplo "Das quadradas das águas perdidas" como o melhor lançamento musical daquele ano. Mário Aratanha, um ex-jornalista e hoje dos mais importantes produtores fonográficos e artísticos através da Kuarup, depois de ter reunido Elomar e Paulo Moura (clarinete), Arthur Moreira Lima (piano) e Heraldo do Monte em "Consertão", promoveu, no início do ano passado, um novo reencontro de Elomar no palco, desta vez num espetáculo que não veio a Curitiba: "Cantoria", ao lado de Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai. Se o espetáculo não veio aos nosso palcos, pelo menos o disco aqui chegou (ao menos no Savarin, sempre atento as boas produções), registrando este magnífico espetáculo gravado ao vivo em sistema digital PMC, no Teatro Castro Alves, em Salvador, nos dias 13 a 15 de janeiro de 1984. Com uma excelente qualidade técnica - o que não é comum em gravações ao vivo, "Cantoria" é, como diz o próprio Aratanha, um encontro histórico entre grandes criadores em seu estado puro: apenas as quatro vozes e suas violas, alternando-se em solos, duos, trios e até quartetos. Com público específicos (embora muitas vezes sobrepostos), estes quatro expoentes da música nordestina do chamado "estado sertanejo" produzem o que há de mais forte na cultura regional. Elomar, por sua importância como criador musical, trazendo a música do Interior a substância ibérica, há muito já merecia ter ensaios mais longos a propósito de sua música - o que vários dos seus entusiastas admiradores se propõe a fazer (mas até agora não concluído). Nesta "Cantoria", temos Elomar apresentando (com Xangai, nos vocais) o "Cantiga do Boi Incantado", composição incluída na trilha sonora do filme "Boi Arua", desenho animado de Francisco Liberato de Mattos e anteriormente gravado no lp "Sertania - Sinfonia do Sertão" (1). A outra faixa de Elomar neste elepê é a também belíssima "Cantiga do Estradar" - as duas formando uma espécie de base dentro de um roteiro de intensa beleza desde que se tenha sensibilidade para penetrar no mundo destes cantadores que fazem um trabalho independente dos esquemas de consumo impostos pelas grandes gravadoras. Talvez por isto é que nenhum dos quatro cavaleiros deste canto não-apocalíptico frequentem as paradas de sucesso dos ibopes da vida. Geraldino Azevedo, pernambucano de Petrolina, 40 anos, sete elepês gravados, abre o disco com "Novena", sua bela parceria com Marcus Vinícius e, em solo, volta depois com a junção de "Semente de Adão" (parceria com Carlos Fernando) e "Viramundo"(Gil/Capinam), Vital Frias, paraibano de Taperobá, três elepês já gravados com a reinterpretação de sua "Saga da Amazônia" - um contundente canto ecológico - é a emoção deste disco que tem uma intensa força dramática. Retorna também em "Sete Cantigas para Voar". Já Xangai - Eugênio Avelino, baiano de Vitória da Conquista, primo de Elomar, filho e neto de sanfoneiros, mostra a beleza de "Kukukaya" (O Jogo da Asa da Bruxa), belíssima composição de Cátia de França (2) e se faz ouvir também no tradicional "Ai D'Eu Sodado" (O ABC do preguiçoso), e em "Matança", de seu parceiro Jatobá. Embora cada faixa tenha um solista, a integração dos quatro amigos é intensa - especialmente nos violões tão fortes e vigorosos. Xangai, que em 1969 havia estreado num despercebido lp ("Acontecimento", CBS), no qual ainda se assinava Schangay - grafia mais próxima do nome da sorveteria de seu pai, em Vitória da Conquista (razão de seu nome artístico) há três anos fez um disco independente ("Quié Qui Tu tem Canário") que consideramos como o melhor elepê alternativo de 1982. E Xangai não está apenas na "Cantoria", mas, no final do ano, mereceu da mesma Kuarup, a edição de seu terceiro elepê solo - "Mutirão da Vida" com muita razão destacado em várias listas como um dos melhores discos produzidos em 1984. Xangai é um menestrel virtuoso, que combina integridade cultural, beleza poética, sofisticação instrumental e as surpresas rítmicas do "cuentro" por ele lançado, "levando mais além o espírito de Jackson do Pandeiro", bem diz o produtor Aratanha. Sua voz é personalidade e ele em suas músicas, procura misturar vários ritmos. É coco, baião, xaxado. Difícil - diria até, quase impossível, rotular. Neste "Mutirão da Vida", Xangai formou uma original banda ("Cumeno cum Cuentro") em que se esmeram músicos do naipe de Jaquinho Morelembaum, Marcelo Bernardes, Alex Madureira e Mingo. O repertório é esplêndido: "Fábula Ferida" (de Jatobá, amigo e compositor favorito de Xangai) fala do nordestino na cidade. "Trabalhadores do Metrô" de Raimundo Monte Santo (falecido há 7 anos, quando viajava de São Paulo para Curitiba, onde faria um show no Paiol) e Walter Marques enaltece os anônimos operários do metrô de São Paulo. De Geraldo Azevedo/Carlos Fernando é "O Menino e os Carneiros"; as "Gírias do Norte" (Jacinto Silva/Onildo Almeida) tem um clima dançante, enquanto "Ele Disse" (Edgar Ferreira) é um antigo sucesso de Jackson do Pandeiro sobre a carta-testamento de Vargas. "Mutirão da Vida" de Hélio Contreiras tem um tom de denúncia, que antecipa o encerramento da face B com a profissão de fé em "Violeiro", do primo e mestre Elomar, que ensina: "... sem um tostão na cuia, canta até morrer o bem do amor" O lado 2 é o lado de lá, o Sertão, com sua gente e sua vida. Tem "O Pidido"(Elomar) das coisas da feira; tem o "Alvoroço" (Capinam/Xangai) da moça de passo formoso; tem o jogo da vida de "Kukukaya" de Cátia da França; tem o desafio instrumental de "Cumeno Cum Cuentro" (Alex Madureira) e termina com os 150 versos da obra-prima "Natureza" (Ivanildo Villlanova/Xangai). Gravado e mixado por Felipe Cavalieri no Estúdio Porão, de Egberto Gismonti, "Mutirão da Vida" foi produzido por Mário de Aratanha e tem capa de Jaime Houard. Além da Banda Cumeno Cum Cuentro, teve participações especiais de Geraldo Azevedo, Hélio Contreiras, Marquinhos, Marcos Amma e Paula Martins. Caso não encontre nas lojas, tanto "Cantoria" como "Mutirão da Vida" podem ser pedidos pelo reembolso postal - Avenida Rio Branco, 277/1801 - CEP 20047 - Rio ou pelo fone: (021)220-1623. Notas (1) Em edição patrocinada pela Fundação Cultural da Bahia, a Orquestra sinfônica da UFB apresenta "Sertania-Sinfonia do Sertão" de Ernst Widmer. Numa faixa, Elomar, acompanhando-se apenas ao violão, interpreta "Cantiga do Boi Incantado". (2) Cátia de França fez dois elepês na CBS. Esplêndida compositora e cantora, está entre os mais fortes talentos nordestinos. Infelizmente suas canções raramente são divulgadas nas estações de rádio, especialmente no Sul.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
25
10/02/1985

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br