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Aramis

Chatas, ternas, diabólicas e sofredoras crianças do FestRio

Ao contrário de suas primerias quatro edições, o FestRio/Fortaleza 89 não teve a mostra Um Olhar Feminimo - reunindo especificamente as obras de cineastas contemporâneos. Nem por isto, entretanto, as cineastas, produtoras e - naturalmente - atrizes, deixaram de ter uma presença marcante na capital cearense, merecendo a principal reportagem na última edição do "Fest Rio News" - o jornal interno do evento. Ao invés de Um Olhar Feminino, o FestRio poderia ter uma mostra chamada Um Olhar no Amanhã pela coincidência de vários dos longa-metragens levados as diferentes mostras se voltarem às crianças e adolescentes. Crianças sofredoras, idealistas, boas, chatas, malefícias, inteligentes, amadas e desamadas estiveram nas telas do FestRio, em filmes vindos de várias partes do mundo - mostrando difrentes comportamentos, dentro da visão com que cada realizador(a) se deteve nos personagens infantis - ou adolescentes - que sempre possibilitam uma aproximação emotiva - não raramente chegando às lágrimas. Na competição, logo no primeiro dia, uma espanholita de 10 anos, morena, com sua doce e suave expressão trasnformava-se numa espécie de anjo do mal: Luna (Patrícia Figon) em "A Lua Negra", do espanhol Imanol Uribe, amplia a (já extensa) galeria de crianças endemoniadas - que de "A Aldeia dos Malditos" a "O Exorcista" tem enfeitiçado/assustado espectadores de todo o mundo. Reaproveitando o mito Lilith (a primeira mulher de Adão, por ele repudiada e que em vingança se uniu aos demônios) Uribe coloca Luna num lar burguês nos arredores de Madrid, no qual, com a chegada de uma misteriosa personagem, sintomaticamente chamada Eva (Lydia Bosch), passa a provocar pânico, morte e terror. Como cinema de terror fica num palco de programa classe "B" e foi um início melancólico do festival, mesmo com toda indulgência. Outra menina, esta de 5 anos, Ana (Alejandra Vergas), do dramalhão mexicano "Lola", dirigido por Maria Navarro, não teve melhor sorte em termos de empatia. Ao contrário, se houvesse um troféu irônico para a personagem mais irritante a mexicanazinha o levaria tranqüilamente. Tão chata quanto a mãe, personagem-título de um filme insoso sobre uma jovem esposa abandonada pelo marido - músico que vai tentar a sorte em Los Angeles - e que entre o trabalho de camelô nas ruas da Cidade do México, após os terremotos de 1885, envolve-se em várias aventuras sexuais. A filha Ana, que ela acaba entregando a avó, ao invés de simpatia passa um sentimento de irritação e a garotinha chateia tanto que nem a mais lacrimogênica espectadora sente raiva da desnaturada mãe em preferir dar atenção aos amantes do que a filha. Outro dramalhão latino "Venir al Mundo", vindo de Cuba, direção de Miguel Torres, faz uma abordagem da infância de forma diferente. Ou seja, da dificuldade de três casais de classes sociais diferentes em terem filhos. Convencional, esquemático, parecendo uma campnha em favor do aumento da população, do que uma obra capaz de mostrar a vitalidade do cinema cubano - em anos anteriores, participando com obras de mais valor (como "Se Permuta", uma comédia excelente, exibida no I FestRio e que continua, inexplicavelmente, inédita comercialmente). xxx Mas nem só de banalidades e frustrações foi o enfoque sobre os personagens infantis. Os russos, por exemplo, em conseqüência da Glasnost, apresentaram dois pungentes retratos de damas que até há pouco tempo jamais seriam exportados. Em "Erro Fatal" (Rokovarys Oshbka), Nikita Hubov pôde desenvolver um projeto antigo que só com os ventos liberalizados da era de Gorbachev pôde acontecer: um drama psicológico abordando as relações de quatro jovens rebeldes (sem causa) da Moscou 89. Nadia, uma criança indesejada pela mãe - que a abandonou logo ao nascer para viajar ao Oriente com um amante - vive com uma mulher solitária, que a tem como filha. Rebelde, forma com Jirafa, Bujara e Elena, três amigas da pesada, um grupo que vive nos bares, curte rock e está bem distante daquela imagem saudável da juventude socialista. Nadia acaba se apaixonando por um oficial veterano da invasão do Afeganistão, interfere em sua vida conjugal, inventa uma gravidez e não dá descanso ao pobre diabo. Quem imaginaria rebeldes saias, sem causa, na melhor linha nicholasryaianos (a propósito, "Juventude Transviada" acaba de sair em vídeo) numa Moscou tão ciente dos valores de sua juventude? Justamente por esta abordagem corajosa de um problema real confere ao filme de Nikita Hubov - que foi o último a ser mostrado na competição - um valor maior. Mais pungente e emotivo, mas também numa linha de sinceridade que mostra os problemas das crianças e jovens na URSS, foi "Ser - a Liberdade e o Paraíso", de Serguei Bodrov (levado na mostra informativa internacional): Sasha Grigoriev, um garoto de 13 anos, vive e estuda numa escola especial para crianças problemáticas. Sua mãe morreu e seu pai, que ele jamais conheceu, está preso numa distante região. Sasha foge da escola, consegue a direção da colônia penal e empreende uma longa viagem para afinal conhecê-lo. Passam juntos algumas horas e é grande a emoção. No dia seguinte retorna a Moscou. Mesmo tocando em problemas sérios - conflitos familiares, solidão, falta de afeto etc. - tanto "Erro Fatal" como "Ser" mostram, entretanto, que questão mais grave foi resolvida: as crianças não passam fome e têm escola. O máximo de vício que aparentam são alguns goles de vodka e os cigarros que as meninas de "Erro Fatal" transam nos banheiros. Sofrimento maior - comparável ao do "Pixote" brasileiro (a propósito, o filme de Hector Babenco foi incluído como o 3º melhor da década, no levantamento da revista "American Film") - é o de Krishne, 10 anos, um garoto indiano que vai para Bombaim sohando em fazer 50 rúpias, que sua mãe necessita. Enfrenta a violência, miséria e fome na grande cidade, sofrendo tanto quanto o Pixote - o que levou muitos a compararem "Salaam Bombay", realização de Mira Nair, 32 anos, ao filme brasileiro. Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro - 1989, sem chances de lançamento comercial no Brasil, "Salaam Bombay"foi mostrado no Midnight Movies, a sessão organizada por Fausto Canosa agrupando a produção mais recente e da qual poucos títulos são comercializados entre nós. xxx Se a espanhola Luna, diabolicamente enfeitiçou pelo mito de Lilith, no filme que representou a Espanha na competição do FestRio, é irritante, entre menina de 10 anos, Manika (Ayesha Dharker) em "Manika Une Vie Plus Terd..." ("Manika, Uma Vida no Além"), um dos dois representantes da França (o outro foi "Tolerance", de Pierre-Henri Salfati), mereceu elogiaos e este cogitado para alguma premiação. O próprio júri da Organização Católica de Cinema (que premiou "Romero" e deu menção honrosa a "Que Bom Te Ver Viva") analisou bastante este filme que trata, de forma respeitosa e profunda, de um tema polêmico em termos de religião católica: reencarnação. Numa pequena aldeia de pescadores às margens do Oceano Índico, Manika, uma menina esperta e bonita, surpreende ao seu professor, o jesuíta Daniel (Julian Sands, visto já em "Uma Janela para o Amor"), de que teve uma vida anterior e que morreu no parto. Sua disposição de viajar 3 mil Km pelo Nepal para encontrar seu marido - ainda vivo e que havia prometido, no leito de morte, aguardá-la em sua segunda vida, faz com que uma longa caminhada tenha inícnio, acompanhada do jesuíta. O encontro acontece e o homem que havia sido seu marido, já casado novamente, a aceita normalmente, para irritação da esposa. Enquanto ocorre este conflito, o angustiado padre Daniel encontra na compreensão da irmã Ananda (Stephane Andren, de "A Festa de Babete") condições para discutir questões de vida, morte e reencarnação. Um filme aberto a muitas interpretações, dirigido com segurança por François Villiers (marcante filmateca, mas ainda desconhecido no Brasil) e valorizado por uma bela fotografia de Alain Levant que aproveita os cenários do Nepal. xxx Um vídeo de Moçambique, prêmio especial do júri e o troféu do Centro Internacional de Cinema para a Juventude (filmes/TV/vídeos), trouxe uma mensagem em favor da infância abandonada de um dos países mais miseráveis da África: "As Crianças em Lhanguene". Em 24 minutos, Rodrigo Gonçalves mostra a impressionante mortalidade infantil em seu país e denuncia por que ela continua a existir, apesar dos apelos que estão sendo feitos internacionalmente. xxx Da fome e sofrimento das crianças a uma solidão infantil: "Beije-me com Carinho" (Embasse-moi), de Michele Rosier, 59 anos (cineasta francesa desconhecida no Brasil), apresentada na mostra informativa, Louise (Sophie Rochut), 12 anos, é uma garota entediada durante as férias de verão em Paris. Seus pais estão separados. Sua mãe (Sophie Rochut), uma pianista famosa, preocupa-se com a carreira e com o amante alemão (Thomas Nock), enquanto o pai executivo atribulado (Patrick Chesnais), não se desgruda dos negócios. Assim a garota Sophie passeia por Paris (fotografada em sua forma mais turística), faz amizade com pessoas mais velhas - como o fotógrafo homossexual (Yan Collet) mas, no final, acaba nas águas do Sena - não ficando claro se foi suicídio ou acidente. Mas ela não morre! Salva por um casal de namorados, termina com um diálogo otimista em relação à vida. De todos os filmes levados a Fortaleza e que tiveram a infância como tema, nenhum emociona mais do que "Fuga na Névoa", do grego Theo Angelopoulos, premiado em Veneza e San Francisco no ano passado e que na mesma noite em que tinha sua exibição na mostra paralela no Cine Iguatemi II, era premiado na Europa, com o Fênix - um troféu que corresponde ao Oscar para a cinematografia do Velho Continente. Belíssimo em suas imagens, focando a longa jornada de duas crianças em busca do pai - que elas acreditavam viver na Alemanha - "Topio Stin Omichli" foi, no contexto geral, o melhor dos filmes mostrados no FestRio. Só não pôde concorrer aos Tucanos porque já havia sido premiado internacionalmente. Suzana Schild, do "Jornal do Brasil" chegou a propor a criação de um troféu especial para esta obra-prima de um cineasta de 53 anos, 20 de carreira, autor de cinco longas aplaudidos internacionalmente, mas que continua inédito no Brasil. Terça-feira falaremos um pouco mais a seu respeito. LEGENDA FOTO 1 - Manika: reencarnação à indiana. LEGENDA FOTO 2 - Nadia: rebelde (de saias) russa.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
09/12/1989

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