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Aramis

Crimes (do passado) & punições

"A idéia de "Linha Mortal" veio da minha busca de uma nova fronteira para as pessoas da minha geração. O Oeste foi conquistado, o espaço já foi demarcado, e estas pareciam ser as únicas fronteiras que se antepunham diante de nós" (Peter Filardi, roteirista de "Flatliner") xxx Entre a produção cada vez mais comercial do cinema americano atual, em que o gênero de terror foi literalmente massacrado por uma escalada do chamado "horror explícito", que o reduziu para platéias carnivoramente sangüinolentas em termos visuais com a exclusão da inteligência, sensibilidade e mesmo o humor, é surpreendente um filme como "Linha Mortal" (Cine Plaza, 5 sessões, hoje último dia em exibição) (*). Além de seus méritos como um filme que eleva as mais altas temperaturas a tensão e mesmo um certo suspense (não no sentido tradicional, mas na ótica de fazer o espectador ficar com o olho pregado à tela), "Flatliner" tem outro cacife: é uma das obras mais abertas a discussões / interpretações. Ou seja, o espectador sai com as imagens na retina e atingido por uma discussão que não se esquece após o primeiro sono, como acontece com o grosso da produção atual. Ao contrário, estimula o raciocínio e a reflexão. A partir de um roteiro inteligente (de Peter Filardi), "Linha Mortal" consegue unir um tema fascinante em seu mistério - a vida após a morte - com uma proposta de redenção humana. Moralista, religioso em muitos aspectos, mas fantasticamente perturbador, é a experiência que cinco jovens estudantes de medicina desenvolvem para tentar transpor a fronteira da vida para o mistério da morte, que vem com a(s) revelação(ões) de um outro mundo. Estimulados por um estudante brilhante, Nelson Weight (Kiefer Sutherland), quatro colegas - a tensa Rachel Nannus (Julia Roberts), o idealista e ao mesmo tempo rebelde (suspenso da faculdade de medicina já na primeira seqüência) David Labraccio (Kevin Bacon), o conquistador Joe Hurley (William Baldwin) e o brilhante e reflexivo Randy Steckle (Oliver Flatt) reúnem-se no laboratório da Universidade - em seus toques de barroca religiosidade - para um experimento médico-científico assustador. Um a um, vão se submetendo, em dias seguidos, a uma morte provocada, com a gradativa diminuição dos batimentos cardíacos individuais - um por vez - enquanto os outros quatro munidos com equipamentos médicos, após a "morte clínica", entram em cena para reavivá-lo. Surge uma terrível disputa de verificação de quem permanecerá maior tempo no território insondável da morte, na busca de uma experiência mais ampla, para descrever ao voltar. Só que nesta provocação do desconhecido, os jovens acabam trazendo de volta manifestações de pecados do passado, algo para o que eles não estavam preparados. Como Freddies Kruegers da série "A Hora do Pesadelo" (já em sua quinta parte), em que personagens do além surgem das trevas do pensamento para uma terrível expiação - aqui são as vítimas de um passado que retomam a vida. Entretanto, o filme de Joel Schumacher está anos-luzes à frente dos diretores daquela série, que esbanjam da violência e do sangue. Apenas uma tênue sugestão de idéia - como também de outro filme de sucesso - o semi-documentário "A Vida Além da Morte" - que nos ocorre a propósito desta forma nova, que foi encontrada para desenvolver um roteiro original. Pode-se (e deve-se mesmo) questionar o aspecto moral(ista) do roteiro de Filardi - afinal, os "crimes" pelos quais os cinco jovens passam a ser perseguidos por espectros do passado, não foram totalmente intencionais, mais como erros da infância ou juventude - e a punição que ameaça os levar à loucura parece extremamente rigorosa. Este é o lado "religioso" do filme - que oferece tantos elementos aos que pensam numa punição pós-mortem como aos kardecistas que acreditam em outras vidas. Experiências parapsicológicas e estudos com centenas de pessoas que foram consideradas clinicamente mortas trouxeram fatos reveladores - sensações de corredores iluminados, vozes, paisagens, etc. - que aqui são captados e embelezados numa fotografia primorosa de Jan de Bont, que utilizou com perfeição filtros, efeitos de fumaça e neblinas, criando cenários barrocos - mesmo filmados à luz do dia - combinando uma variedade de estilos arquitetônicos históricos do Museu da Ciência e da Indústria e o Taft Building da Universidade de Chicago, entre outras locações. O requinte do diretor Schumacher - que já havia provado sua competência num lírico reencontro de jovens colegas ("O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas"), um terror contemporâneo e extremamente bem humorado ("Os Garotos Perdidos") e a lírica refilmagem do "american way of life" de "Cousins" ("Um Toque de Infidelidade", para nós um dos 10 melhores filmes de 1990) - encontrou no desenhista de produção Eugênio Zanetti e no fotógrafo Jan De Bont parceiros perfeitos para o requinte visual. Assim, criaram uma atmosfera goticamente estilizada, com as cenas do laboratório em que se desenvolvem as experiências com a incorporação de uma iluminação tenebrosa, sobre um piso de placas de aço, tudo como se fosse "para invocar imagens do inferno, enquanto os anjos e guardiões do tempo das colunas sugeriam a proteção divina", como explicou Joel Schumacher. Um elenco de jovens competentes - e a presença encantadora da nova sex symbol americana, Julia Roberts ("Flores de Aço", "Uma Linda Mulher"), contribuem para fazer deste, um filme que pode conquistar um público mais amplo. Embora, aquele espectador tradicionalmente consumidor do esquema de terror explícito, acabe saindo após 15 minutos, uma faixa mais requintada, capaz de observar a sutileza do roteiro, o encanto visual e uma trilha sonora marcante de James Newton Howard - tensa em momentos certos, mais descontraída em outros - tem tudo para ver "Linha Mortal" como uma das boas surpresas desta temporada de vacas magríssimas cinematográficas. Afinal, o rebanho está para ser engordado a partir do dia 13 de fevereiro, quando a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anunciará os nominados do Oscar. Bons criadores, as distribuidoras estão com as reses visuais prontas para chegarem aos pastos da tela aproveitando o maior marketing da indústria cinematográfica. xxx (*) Programado inicialmente para duas semanas em exibição, "Linha Mortal" será substituído amanhã pela comédia "A Casa Maluca" (Madhouse), de Tom Repelewski, na linha do humor nonsense. Lamentável que os programadores da Empresa Cinematográfica Sul, que administra o Cine Plaza, não tenham um pouco mais de sensibilidade. "Flatliner", pelas suas características, é o exemplo do filme que poderia ter um público em escalada e se tornar mesmo um cult movie. Retirando-o de cartaz, a empresa corre um risco: queima um filme de valor e lança outra produção, sem maiores atrativos, que dificilmente fará boa bilheteria. Na próxima semana, está prevista a estréia de "Lembranças de Hollywood" (Postcards from the Edge), de Mike Nichols, com Meryl Streep e Shirley MacLaine - possíveis indicadas ao Oscar-91 - e que teve sua pré-estréia, com casa lotada, na noite de terça-feira, em promoção do jornalista Wilson Cunha, do programa "Cinemania", da Rede Manchete. LEGENDA FOTO - Nelson Weight (Kiefer Sutherland) e Rachel Nannus (Julia Roberts) levando um colega, David Labraccio (Kevin Bacon) a uma experiência perturbadora: "Linha Mortal", um filme de qualidade que tem hoje suas últimas exibições no Plaza.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
20
31/01/1991

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