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Aramis

Da necessidade de rever a nossa música não urbana

A Aconteve em Curitiba, numa sessão plenária do I Encontro de Pesquisadores da MPB (auditório Salvador de Ferrante, 1.º /3/1975): Lúcio Rangel, 63 anos, pioneiro do jornalismo musical no Brasil, verdadeira enciclopédia de nossa MPB, falava sobre a necessidade de se repensar os nossos valores e, em certa altura, citou como exemplo de compositor que poucos conheciam, mas que pela extensão de sua obra, devera estar rico em direitos autorais, o paulista Raul Torres (Batucatu, 1096 - São Paulo, 1970). Na platéia, um senhor modesto, com humildade, pediu um aparte e disse: - Desculpe, sr. Lúcio, mas só se Raul Torres está rico nas estâncias do céu, pois ele faleceu há 5 anos, no dia 12 de julho de 1970. Lúcio Rangel não se deu por perdido e acrescentou: - Eu sempre julguei conhecer um pouco de música brasileira e sou agora surpreendido com esta informação. O que prova, mais do que nunca, a necessidade de se estudar e pesquisar a música rural. O aparte havia sido feito pelo Capitão Furtado (Ariovaldo), Pires), 70 anos, 50 anos ligado à composição e produção musical, a maior autoridade em música não urbana em nosso País - e que tem mais de mil composições gravadas, vários livros publicados e ainda há 3 semanas esteve em Curitiba, presidindo o júri das eliminatórias do Festival de Música Sertaneja, patrocinado pela Rádio Records, de São Paulo - emissora que tem na linha dita "sertaneja"- a razão de um fabuloso faturamento e extraordinário audiência. Lembro este episódio para destacar, mais uma vez, a imediata necessidade de se empreenderem estudos, pesquisas, mesmo teses sobre a música rural - em seus aspectos sociológicos, econômicos e culturais - no sentido antropológico. Afinal, não é possível que se continue a discriminar a existência de uma imensa legião de compositores, músicos, intérpretes - enfim comunicadores da mais alta voltagem, como são os artistas rurais - não confundir com classificações estanques, tipo "sertanejos", "caipiras", gauchescos" etc. Afinal, o campo é amplo exige aprofundadas análises - inclusive capazes de classificar as diversas tendências regionais - pois a música que o homem do Interior no Norte/Nordeste curte, falando de sua realidade, é diferente daquela do centro-oeste e, esta daquela que se cultiva no Interior de São Paulo e parte do Paraná, enquanto a chamada música gauchesca - com influência platéia - é um capitulo a parte. Também é importante entender aonde começa a criação individual e termina o folclore - campo que tem criado muitas confusões. Por coincidência, comemora-se neste ano o cinqüentenário das primeiras gravações de música caipira, dentro da terminologia criada pelo escritor e folclorista Cornélio Pires (Tietê. 1/7/1884 - São Paulo, 17/1/1958), que, e, abril de 1929 procurou o lendário Byngton, todo poderoso diretor da gravadora que hoje é a Continental - para propor gravação com os "seus caipiras", Byngton não acreditou que as músicas ingênuas, pobres harmonias, linguajar pobre dos intérpretes que Cornélio Pires apresentava em seus shows, pudessem ter qualquer rentabilidade na fonografia, então iniciando seus passos na fase elétrica, Impôs mil exigências, inclusive o pagamento antecipado. Cornélio conseguiu o dinheiro e mandou fazer 5 mil copias de cada um dos primeiros 78 rpm, série com o seu nome, a partir do número 20 mil, com músicas e anedotas que tinham títulos como "Entre alemão e italiano", "Anedotas norte-americanas", "Austúcias do Negro Velho", "Rebatidas de caipira", "Simplicidade de caipira", "Numa escola sertaneja", "Coisas de Caipira", "Batizado do Sapinho " e "Desafio de caipira". Com seus artistas caipiras, Cornélio saiu Interior paulista afora e em poucos dias vendia todos os discos. Telegrafo a Byngton e companhia e pediu a edição de mais de 10 mil cópias de cada 78rpm. E praticamente, o gênero nunca mais parou. Hoje, com todo o som universal, as multinacionais impondo a música estrangeira, a música rural ainda resiste - como um último símbolo de brasilidade e de raízes da terra, embora, obviamente, nas últimas 2 décadas, o comercialismos, o marketinh, as regras inflexíveis do marcado tenham tomado conta de 80% dos artistas - duplas, trios ou artistas individuais, embora Tônico e Tinico, Alvarenga e Ranchinho, ainda mantenham muito do espírito original de artistas realmente populares como João Pacífico, Raul Torres e mesmo Paraguaçu (Roque Ricciardi, 1894-1976), por sinal, revelados por Cornélio Pires, que deixou vários e importantes livros, como "Quem conta um conto...", verdadeira antologia do humor do homem do Interior. Como dissemos, o tema é tão amplo que está à espera de pesquisa e estudos aprofundados - e que tem como ponto de referência a memória privilegiada do Capitão Furtado, aos 70 anos, continuando a trabalhar: está produzindo elepês com a seleção do que melhor foi feito no gênero e promete escrever suas memórias. Estudos universitários, como a tese "Acorde na Alvorada", de Waldeny Caldas - analisando a eletrificação na música rural (via duplas estilo Leo Canhoto e Robertinho) são ainda pingos d`água neste oceano de brasilidade tão necessário de ser melhor navegado pelos nossos pesquisadores - e que esperamos, ainda, ver reunidos num simpósio ou seminário de nível universitário. Afinal, ao lado dos milhões de cópias de elepês de tantos artistas rurais que se vendem mensalmente, Brasil afora, há o reflexo de toda uma realidade - que independente de preconceitos de ordem estética, merecem ser analisados e debatidos. Afinal, nem só de Chico Buarque & Milton Nascimento vive a cultura musical brasileira e eles próprios são os primeiros a entenderem a importância de que se volte os ouvidos para o que (sobre) vive no fundo das almas de nosso povo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
1
22/06/1979

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