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Aramis

De braços abertos e lágrimas nos olhos

Poucas vezes na história do teatro brasileiro uma peça escrita por encomenda resultou num resultado tão brilhante quanto "De Braços Abertos". Rara combinação de êxito de público (prova disto são quase dois anos de casas lotadas) e realizações artísticas, esta peça de Maria Adelaide Amaral é a confirmação maior (embora isto nem mais fosse necessário) do talento de uma dramaturga que, de texto para texto, mexe e remexe nos sentimentos humanos, discute as relações do homem/mulher e dos nossos dias, questiona a solidão de todos nós, o envolvimento social e, sobretudo, a afetividade. Seja na análise de uma redação de revista em crise ("A Resistência", qualquer semelhança com os últimos dias de "Realidade não foi mera coincidência), da marginalização profissional ("Arquivo Morto") ou na hipocrisia do mundo dos executivos ("Bodas de Papel", por sinal sua primeira peça encenada). Difícil assistir a "De Braços Abertos" (auditório Salvador de Ferrante, hoje, último dia), sem emoção. Se os diálogos (brilhantes) colocam um aparente humor nas relações Luíza-Sérgio - e, parte da platéia, inconseqüentemente, ri às bandeiras despregadas - o que se nota é um humor mordaz, amargo - muito mais para Woody Allen e sua visão patética do mundo do que de Chico Anísio. São tantos e múltiplos os aspectos que fazem "De Braços Abertos" uma realização maior do teatro brasileiro nestes últimos anos que, sinceramente, há até uma timidez na utilização dos adjetivos. Basicamente, um texto perfeito - originalmente parte de um romance imaginado em 1979 mas que Maria Adelaide, desenvolveu a pedido de Irene Ravache, que desejava uma peça que falasse de amor e desencontro e da grande (e comum) dificuldade de duas pessoas se encontrarem e, sem opor resistência, se renderem uma à outra. Duas pessoas - ele, Sérgio, 42 anos, (mal) casado, 3 filhos, jornalista frustrado em sua profissão e idéias, na margem cinzenta do mundo - nem herói, nem vilão - apenas um ser humano que busca na ironia, num aparente cinismo, uma fuga, um escape de seu pequeno universo de limitações diárias. Ela, Luíza, mulher fascinante, esposa de engenheiro bem-sucedido e artista gráfica que busca sua realização profissional. Do encontro dos dois nasce uma relação intensa de amor e procura, desbancando a uma carinhosa agressividade - intensamente sensual, chegando a lembrar aquilo que Arnaldo Jabor coloca, em imagens tão contundentes e emocionantes, em seu "Eu Sei Que Vou Te Amar", o filme que representa o Brasil no Festival de Cannes, recém-iniciado. Como no filme de Jabor, em "De Braços Abertos" há apenas dois personagens em cena. Um homem, uma mulher - não na visão leloucheana (a propósito, neste festival de Cannes, Lelouch retoma os personagens de "Un Homme... une femme", 20 anos depois), mas foi mais para o universo huis clos de Antonioni e de sua trilogia da incomunicabilidade, que tanta emoção/empatia trouxe à geração dos anos 60: "A Aventura", "A Noite" e "O Eclipse". Mas "De Braços Abertos" é (e aí está, talvez, o seu maior mérito) antes de tudo uma peça de teatro. Carpinteira admirável das palavras, que chega à perfeição do artesão no entalhe dos sentimentos, Maria Adelaide constrói e arma toda uma casa de sentimentos tal como os artesões montavam, no passado, sólidas residências sem terem que usar um único prego. Tudo ajustado perfeitamente e se pregos existem eles são as marteladas nos sentimentos. Na ironia e, especialmente na empatia que faz com que tantas frases-verdades, desabafos sinceros dos personagens soem com uma aguda (e doída) verdade. Tal como no profundo "Cenas de um Casamento" de Bergman (para ficar apenas neste exemplo), há momentos em que o espectador surpreende-se ao flagrar "a frase que havia dito" ou... no mínimo pensado, em algum momento de sua vida. Mais do que a história de encontros e desencontros de um casal de amantes de meia-idade, "De Braços Abertos" é a grande peça do amor, da vida e da esperança - inclusive em seu emotivo final, quando Luíza diz que "mas vou continuar de braços abertos porque apesar da dor, do desencanto que sempre experimento nas minhas relações, continuo acreditando que o amor é a única coisa capaz de me salvar..." Um belo texto - por mais perfeito que seja - não seria uma obra-prima no palco se não houvesse uma montagem perfeita. E graças à sensibilidade da maior revelação em termos de direção de palcos nestes últimos anos, José Possi Neto, "De Braços Abertos" encontrou na encenação uma beleza tão grande quanto o texto. A direção soube dar a Irene Ravache - atriz que hoje está entre as 5 (ou 3) mais importantes intérpretes brasileiras (remember o clássico comercial sobre educação de trânsito que fez há 8 anos para o Bamerindus) - e a Juca de Oliveira a oportunidade de criarem personagens definitivos, que dificilmente serão superados em outra peça. A propósito, esclarecedora uma declaração do próprio Possi Neto sobre seu trabalho de direção: - "O homem livre, livre porque disponível. E despojado de sua auto-imagem e refletem Luíza e Sérgio. E ao refleti-los, refletem todos os Sérgios e as Luízas do mundo. Toda a paixão, a dignidade, a mesquinhez, a coragem, o amor, o medo, enfim o conflito dos amantes do nosso mundo hoje". Os cenários de Felippe Crescenti não poderiam ser mais perfeitos. A simplicidade de um piano bar e um quarto de motel - se conjugam com exatidão. Entre tantas (e merecidas) premiações recebidas, faltou, em nosso entender uma: um prêmio especial à Tunica, responsável pela trilha sonora. A escolha das músicas que compõem a música da peça - da "Luíza" (Tom), "The Man I Love" (Gershwin), passando até por Roberto Carlos compõe toda a moldura perfeita para ajudar mais a emoção que toma conta do espectador. E, se ao final do espetáculo, aquela lágrima meio ridícula insistir em permanecer nos olhos, não se envergonhe! Assuma sua sensibilidade, pois "De Braços Abertos" é uma peça com lágrimas no olhar e, sobretudo, arpões no coração.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
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11/05/1986

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