Login do usuário

Aramis

De como se perde no Ceará mais um pedaço da memória

Entre 27 de fevereiro a 1º de março de 1975, quando, pela primeira vez, estudiosos da música popular brasileira se reuniram em Curitiba - num encontro realizado paralelamente ao festival de MPB que marcava o calendário comemorativo de inauguração do Auditório Bento Munhoz da Rocha Neto, um pesquisador nordestino, magro e tímido, impressionou experts com o sempre lembrado Lucio Rangel, Sergio Cabral, Paulo Tapajós, Paixão Cortês, José Domingos Raffaelli e Miecio Caffé, entre outros. Mostrando fichas indicativas e fazendo correções de importantes fatos ligados à nossa música. Miguel Angelo de Azevedo - o Nerez, foi, sem pretender, a grande presença do encontro. Um trabalho que até então vinha realizando modestamente, em Fortaleza, adquiriu projeção nacional e o seu Museu Cearense da Comunicação passou a justificar maior atenção. Além do mais, produtores fonográficos passaram a recorrer ao seu arquivo, onde existem não só mais de 30 mil preciosos 78 rpm, com livros, revistas, recortes de jornais, etc., contendo informações preciosas sobre a música brasileira, em todos os aspectos. Nirez passou também a ser convocado para cursos e seminários, inclusive um realizado na Universidade de Brasília, além de, coo resultado do I Encontro de Pesquisadores da MPB, o então ministro Ney Braga, da Educação e Cultura, ter apoiado a concretização de um projeto importantíssimo: a conclusão do levantamento da discografia brasileira em 78 rotações por minuto que Nirez vinha realizando sozinho. Com uma pequena ajuda do MEC, Nirez e mais dois outros pesquisadores - Jairo Severiano, do Rio de Janeiro e Gracio Barbalho, médico anestesista em Natal, dono da mais completa coleção de 78 rpm da fase mecânica (até 1929), trabalhando por dois anos, entregaram a Funarte nada menos que dez volumes onde estão cuidadosamente anotados todos os discos em 78 rpm gravados no Brasil a partir de 1902, quando a Casa Edisom passou a produzi-los em nosso País. O nome dos intérpretes e autores, número da gravação e, sempre que foi possível localizar, data exata e nomes dos músicos que participaram de cada sessão, num trabalho de arqueologia fonográfica que, em qualquer outro país teria exigido o esforço de uma imensa equipe e que, entre nós, foi feita por apenas 3 pesquisadores. Mergulhados em coleções, consultando catálogos, jornais ou enfurnando-se nos arquivos (nem sempre organizados) das antigas fábricas (Odeon, RCA, Columbia, CBS, etc.), Nirez, Severiano e Barbalho aprontaram a pesquisa que está até hoje no MEC, a espera de que seja editada para poder ser consultada por todos os interessados. O tamanho da pesquisa - afinal são 10 volumes, cada um com mais de 500 páginas, inviabilizou até agora a sua edição, mas o importante é que a mesma foi concluída. xxx Há quatro anos, quando o então secretário da Educação e Cultura do Ceará, anunciou que seria criado o Museu da Imagem e do Som, os pesquisadores de MPB, através de Ricardo Cravo Albim, ex-diretor do MIS-RJ e que na ocasião visitava aquela Capital, sugeriram que Miguel Angelo de Azevedo deveria ser convidado para sua direção, pois ninguém mais do que ele se dedicava [à] pesquisa e [à] preservação de nossa memória. O secretário prometeu mas, como tantos outros políticos demagógicos, acabou designando uma pessoa sem a mínima ligação à área para o cargo. Nirez, modestamente, continuou em suas pesquisas e com seus magros rendimentos de funcionário do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas e de redator do setor de pesquisas do jornal "O Povo", não parou de ampliar o seu acervo, ocupando praticamente toda a sua humilde residência, na Avenida José Bastos, 2386 - sempre procurada por estudantes, pesquisadores e mesmo artistas, fascinados pelas preciosidades musicais ali preservadas. Agora, quando merecia apoio, o seu Museu Cearense da Comunicação, fundado em 1960, é vítima da falta de ajuda e de visão das autoridades: em carta datada de 15 de dezembro último, o bom Nirez nos comunica que o mesmo está fechado porque Prefeitura de Fortaleza "a pretexto de abrir uma rua aterrou um riacho próximo à sua casa, açudando-o completamente e provocando com isto a inundação de toda a área, deixando sem condições de moradia ou permanência de pessoas no local com a invasão por pernilongos". xxx Quem conhece o trabalho de Nirez e o acervo do Museu Cearense da Comunicação - onde estão não apenas discos e informações relacionadas à música brasileira, mas também muito da história da imprensa do Nordeste e uma coleção única de embalagens de cigarros - sabe o prejuízo que a decisão de fechá-lo a consultas traz à nossa memória - tão carente de fosfato. Nirez não é o primeiro nem será o último pesquisador-vítima da insenvilidade dos órgãos oficiais e, como consolo, resta saber que ao menos ele conseguiu salvar da inundação o seu acervo, embora agora o mesmo esteja impossibilitado de ser consultado. xxx Falando em pesquisadores, o paulista Juvenau Fernandes, autor de vários livros, inclusive "Do Sonho à Conquista", a mais completa biografia de Carlos Gomes, está concluindo o Dicionário da Música Brasileira, já tem mais de 51 mil fichas prontas - que amplia dez vezes o trabalho pioneiro feito pelo editor arcos Marcondes, em sua "Enciclopédia da Música Brasileira" (Art Editora, 1972, 2 volumes). Um dos executivos da Fermata, editora de música e discos (voltando a dinamizar seus lançamentos nos últimos meses), há dois anos Juvenal escreveu a todas [às] Secretarias Estaduais de Cultura, solicitando subsídios sobre músicos, compositores, maestros e intérpretes de cada Estado, para incluí-los no dicionário, tornando-o assim mais completo. Por incrível que pareça, apenas duas Secretarias - Maranhão e Pará, responderam a consulta de Juvenal, que, para não deixar sua obra incompleta está buscando, com outros meios, informações regionais - embora, obviamente, não disponha de recursos para uma pesquisa in loco - o que seria indispensável para dar ao seu Dicionário maior abrangência. No Paraná, quem está tentando ajudar a Juvenal Fernandes é o letrista Heitor Valente, da Acorde Produções. xxx O secretário Luis Roberto Soares, da Cultura e do Esporte, inicia 1982 com uma preocupação e um desafio: reativar o Museu da Imagem e do Som, hoje totalmente paralisado e inclusive sem sede. Por alegados motivos de segurança, o nosso MIS, criado graças ao entusiasmo de Nancy Westphalem Corrêa, quando diretora da Biblioteca Pública do Paraná, foi fechado há alguns meses. Funcionando nos fundos do Museu de Arte Contemporânea, na Praça Zacarias, o MIS tinha promessas de ganhar uma excelente sede - o antigo prédio da Secretaria da Justiça, na Rua Barão do Rio Branco, mas o cipoal burocrático do Estado retardou até hoje a cessão do imóvel. Instalado num verdadeiro pardieiro, com precária sala de gravação e guardando material facilmente deteriorável - e até inflamável, como no caso de centenas de cópias de filmes (onde está muito de nossa memória). O MIS-PR mereceu muito blá blá e promessas ao longo dos anos, mas poucas de prática. Marcelo Marchioro e Cesar Ribeiro da Fonseca, que o dirigiam nos 2 primeiros anos da administração de Luiz Roberto Soares, o dinamizaram bastante e mesmo com a boa vontade do secretário da Cultura, não conseguiram desmanchar os nós da burocracia (e da falta de recursos) para lhe dar melhores condições. Afinal, o destino de quase todos os Museus da Imagem e do Som parece ser a falta de condições: no Rio de Janeiro, um recente incêndio quase destruiu o seu valioso patrimônio e hoje o arquivo do Almirante - preciosa documentação sobre a MPB, está jogado num depósito em Niterói. Apenas, um exemplo da falta de atenção para com o passado e que torna ainda atual a frase-título que Franklim de Oliveira cunhou para um de seus mais importantes livros: a morte da memória nacional.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
6
22/12/1981

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br