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Aramis

Embarque nesta flor e viaje em dois tempos

"Numa queda d'água, o que importa é a queda, não a água." (Boris Vian, 1920-1959) xxx Algo importante acontece. Num fim-de-semana em que havia várias opções cinematográficas e duas outras peças de apelo ao público em cartaz ("Solness, O Construtor", com Paulo Autran e a leve comédia "O Vison Voador"), uma peça de quase 3 horas de duração, com artistas principiantes e baseada na obra de um autor absolutamente desconhecido do público, conseguiu ter um público interessado. "Nenúfar" (Teatro SESC da Esquina, hoje a domingo, 21 horas, últimas apresentações) entusiasma uma faixa jovem de público. Após as encenações, garotos e moças, entre 14/26 anos sobem ao palco e cumprimentam atores, atrizes e diretor-autor Marcelo Marchioro. Uma peça assumidamente difícil, longa, construída sobre símbolos e metáforas, sem fazer concessões, traz uma carga dramática-emotiva intensa - que impede a indiferença. Nas duas primeiras semanas, não se registraram casos de pessoas que tenham deixado a sala - apesar do espetáculo só terminar depois da meia noite. Basicamente o público é jovem e na trilha sonora não há rock. Ao contrário, a música é do maior gênio do melhor jazz, Edward Kennedy Ellington (1899-1974), ou Duke Ellington. xxx É lamentável que a temporada de "Nenúfar" se encerre neste final de semana. Um espetáculo destinado a se tornar uma cult-play, ampliando cada vez mais seu público, poderia permanecer semanas - talvez até meses em cartaz, pois pelo muito que propõe e discute tem uma identificação com a faixa de público jovem que, mesmo ignorando totalmente, a fundo quem foi Boris Vian (aliás, um autor até agora conhecido de pouquíssimos brasileiros) ou mesmo colidindo com muitas idéias desenvolvidas na peça, sente uma identificação e uma harmonia - que, para os mais velhos, talvez pela exigência de um teatro tradicional, não atinge. É difícil, quase impossível, ficar indiferente à "Nenúfar" que, como um trabalho anterior de Marchioro - "O Outro Lado da Paixão" - este construído a partir da obra (e vida) de Lewis Carroll traz um realizador densamente preocupado em fugir do convencional, mostrando competência e sensibilidade - com uma griffe de qualidade que falta(va) não apenas localmente mas mesmo ao teatro nacional. "O Outro Lado da Paixão" teve uma encenação paulista (aliás, com a jornalista-atriz Tonica, ex-O Estado, no papel central) que mereceu boas críticas. A possibilidade de "Nenúfar" ser levada a outros Estados é distante: o grupo EmCena, das atrizes Ana Fabrício e Érica Mignom - que investiram quase NCz$ 5 milhões nesta produção - não dispõe de cacife para bancar aventuras extra-curitibanas e é difícil encontrar um patrocinador disposto a investir num espetáculo audacioso como este. xxx "Nenúfar" é uma peça-desafio que propõe várias veredas para sua discussão. O autor Marcelo Marchioro - que trabalhou exaustivamente sobre a imensa obra de Boris Vian (autor que "descobriu" em julho/72, ao adquirir numa livraria de Buenos Aires o texto de sua peça "Os Construtores do Império"), faz questão de frisar que não é um espetáculo biográfico sobre Vian (embora, de forma coringa, os 7 personagens se revezem nas informações sobre o escritor-músico-dramaturgo-ator-diretor). Paralelamente à vida (em si, fascinante e dramática de Vian) - sobre a qual o espectador toma informações paralelas (infelizmente, o programa da peça, que seria fundamental, só ficou pronto nesta semana), há quase duas peças no palco. Os dois atos são - e Marchioro admite isto - como duas peças diferentes: o primeiro só existe para que o segundo possa existir, pois o que acontece no segundo é o que importa. O primeiro é claro, excessivamente alegre e otimista. As interpretações são um pouco over (quase chegando a irritar em certos momentos), como num estado constante de paixão. A luz é clara e sempre em tons rosa e amarelo (aliás, a iluminação criada por Marcelo é esplêndida). Os temas de Duke Ellington são rápidos, alegres e são utilizadas gravações recentes, de matrizes novas e qualidade sonora boa. No segundo, a depressão toma conta dos personagens: eles mostram sua verdade. O ritmo é mais lento, tudo é mais denso, triste. Os personagens vão se desmontando e apodrecendo no seu dia-a-dia. A luz é escura e a predominância é o azul. Os focos de cena são quase sempre laterais e as faces são sempre sombreadas e dificilmente aparecem inteiras ao público. Em contraste direto com o primeiro ato, há pouca música (e quando há são blues tristes, solos de piano tocados por Duke, temas lentos, gravações dos anos 30/40, inclusive um efeito de disco riscado e chiado). xxx Calcado basicamente em "A Espuma dos Dias" (1946) - mas, naturalmente com aproveitamento de vários outros livros de Vian (além de diálogos e cenas criadas pelo próprio Marcelo), "Nenúfar" é uma peça sobre amizade e sonhos em sua primeira parte - e a dor da doença e certeza da morte no segundo. O primeiro ato seria aquele que, como dizia Vian, era o que gostaria de viver - o que seria bom que acontecesse e o segundo o que realmente acontece, a verdade cinza e doída. Consciente de que morreria jovem, Vian sempre colocou esta razão em suas obras e num dos diálogos, a questão é bem explícita: - "Eu não queria morrer, senhores e senhoras, antes de ter tocado o gosto que atormenta, o gosto que é o mais forte. Eu não queria morrer sem ter experimentado o que é o sabor da morte." Amigo de Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir (citados na peça como Jean-Sol Partre e Duquesa de Bovouard), pistonista de jazz, tendo vivido na Paris dos anos 40/50, com todo clima de angústia intelectual do existencialismo de uma época, a obra de Vian não se esgota, absolutamente, numa simples transposição ao palco. Representa, entretanto, uma vereda que neste trabalho extremamente pessoal. Um verdadeiro solo criativo - desenvolvido com um elenco jovem, apaixonado e, como Marchioro, integrado ao projeto - chega a nós, trazendo, 30 anos após a morte do autor-tema, questões para serem refletidas. Personagens densos - como Chick (Joelson Medeiros) em sua literatura (e cujo final, dramático, é uma clara citação de "Farenheit 451", de Truffaut), a Ratazana (Kátia Drummond, atriz, belíssima mulher, uma das presenças mais fortes no palco) ou dramáticos como Chloé (Giovana Soar) se contrapõe ao próprio Colin (alter-ego de Boris - Álvaro Bittencourt), Isis (Ana Fabrício) e Alise (Érica Mignom) (todos, porém, interpretam vários outros personagens). Nicolas (Go Kuster), tem uma presença mais fria (quase crítica) - especialmente no primeiro ato - mas no geral, é um trabalho de equipe, com cada um dando de si o melhor. Destaque especial para o trabalho de coreografia e expressão corporal (Sandra Zugman), com momentos de verdadeiro musical e adereços criativos criados por Ricardo Garanhani que compõem um cenário exato. xxx Longa demais? Esta é a crítica que mais se ouve em relação à "Nenúfar". Marcelo justifica-se: "Não saberia fazer de outro jeito". Colocando toda sua informação/emoção no palco, pode até usar um diálogo para explicar o tempo real do espetáculo. - Por que esta história é tão comprida? pergunta Chloé. - É uma história de amor, responde Colin (Vian). xxx Não é um espetáculo fácil, digestivo que se possa recomendar a quem não esteja disposto a ver/pensar/refletir. Mas também não é um espetáculo descartável. Ao contrário, uma peça para permanecer na retina do espectador que nela souber embarcar (e viajar). LEGENDA FOTO - Boris Vian, falecido em 1959, discutido e curtido: "Nenúfar", peça inspirada em sua obra, encanta os jovens no Teatro SESC da Esquina.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
20/04/1989

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