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Aramis

Espelhos, vitrinas, palavras de Macabéa

"Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois o espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Verso a si mesmo é extraordinário." (Clarice Lispector, "Água Viva") xxx Ao longo de "A Hora da Estrela" (Cine Palace Itália, hoje, último dia em exibição), em vários momentos, Macabéa (Marcélia Cartaxo) mostra seu deslumbramento frente aos espelhos e às vitrinas. Na miserável pensão em que divide um quarto com três outras deserdadas da sorte, ela contempla o espelho por horas. Nas ruas do comércio mais pobre de São Paulo, fascinada ante as vitrinas, a paraibana busca no olhar sobre o cristal das vitrinas uma espécie de outro mundo. Diferente do mundo cinzento, triste e solitário em que vive. Espelhos, vitrinas e palavras. Um tripé que fundamenta uma simples e universal estória de sonhos & desesperanças e que faz com que "A Hora da Estrela" seja um filme de empatia acima de qualquer fronteira geográfica. Não foi sem razão que o júri do festival de Berlim, deu o Urso de Prata a Marcélia como melhor atriz - um dos 18 prêmios que este filme já recebeu. A sua patética interpretação, o sentido extremamente visceral dado a uma personagem-corpo como Macabéa, faz deste longa-metragem de Suzana Amaral, 57 anos, um daqueles raros filmes-emoção da primeira à última cena. Lembrando sua identificação muito mais ao cinema americano - afinal estudou por quase dois anos no Actor's Studio, em Nova Iorque - do que com o cinema europeu, Suzana não aceita qualquer comparação ao cinema de Fellini. "Ao contrário, nunca foi meu favorito, prefiro muito mais a Michelangelo Antonioni." Impossível, entretanto, desassociar as imagens da paraibana Macabéa de Gelsomina, a mais humana de todas as personagens criadas no universo felliniano e que, há 32 anos permanece com a dor, a ternura, a emoção e a empatia com que surgia na obra-prima "A Estrada da Vida" - no contexto de sua pureza e ingenuidade a um mundo selvagem. Filme de autor, criado a partir do texto de uma das mais herméticas e difíceis escritoras brasileiras, Clarice Lispector (1925-1977), "A Hora da Estrela" adquiriu no roteiro de Suzana e Alfredo Oroz uma extrema simplicidade. Quase uma anti-história de uma nordestina feia, solitária, pobre e sonhadora - como milhões de outros emigrados na ilusão da cidade grande. Raras vezes o clima opressivo, sujo, pesado dos ambientes mais pobres de São Paulo foi tão bem fotografado como nas imagens de Edgar Moura. As imagens são pungentes. Por exemplo, quando na pensão, através da janela suja, as quatro jovens assistem, a 10 metros de distância, a transmissão de mais uma escapista telenovela, o máximo da solidão humana é transmitido num rápido take. Ah! Aquela solidão dominical de passeios nos metrôs, no parque da Estação da Luz, no monumento do Ibirapuera - são imagens contundentes de Macabéa e Olímpico (José Dumont, numa interpretação também marcante) - os trágicos personagens desta jóia-cinematográfica que tem em cada personagem a simplicidade de uma vida: a secretária Glória (Tamara Taxman), na busca de seu sonhado companheiro; o chefe Raimundo (Umberto Magnani), o dono da empresa - Pereira (Denoy de Oliveira), sem falar na rápida - mas intensa atuação de Fernanda Montenegro, como Carlota, a cartomante. Marcos Vinícius, compositor da maior importância, imerecidamente pouco conhecido, realizou uma trilha sonora perfeita, na qual as monocórdicas informações da Rádio Relógio, com sua cultura inútil, somam-se a temas incidentais - contribuindo para dar todo o clima de huis clos, do mormaço monótono e desesperado aos personagens deste filme-encanto, capaz de conduzir o espectador às lágrimas - e que em Curitiba, ao contrário do que aconteceu em São Paulo e Rio de Janeiro, não teve o público esperado, de forma que hoje terá suas últimas exibições. Perde quem deixou de ver um dos mais belos momentos do cinema brasileiro: humano, sensível - uma parábola de personagens anônimos que sonham em espelhos e vitrinas no jogo verbal das palavras que não entendem. Como indaga Macabéa ao aturdido Olímpico, em sua ingenuidade: - Afinal, o que é cultura? LEGENDA FOTO - Tamara Taxman e Fernanda Montenegro em "A Hora da Estrela": um filme brasileiro excelente que tem hoje suas últimas exibições no Palace-Itália.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
21/05/1986

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