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Aramis

Estórias do João

Só o folclore de João Gilberto é tema para todo um livro. São estórias & histórias em que o real e o imaginário se confundem e como dizia o senador Rayan (James Stewart) no final de "O Homem Que Matou o Fascínora", quando a lenda sobrepõe-se a realidade, a imprensa publica a lenda. Algumas destas estórias. xxx Numa de suas temporadas em Nova Iorque, isolado durante dias em seu apartamento no 15º andar de um edifício, João ficava o tempo todo, violão nas mãos, procurando a perfeição de uma música. No apartamento, apenas um felpudo gato. Foram dias e dias, em que o gato contemplava João, sozinho, cantando e tocando. Quando, numa manhã, João abriu a janela do apartamento, o gato não teve dúvidas: atirou-se desesperado e estatelou-se no solo. Apesar das sete vidas, preferiu o suicídio - depois de ouvir João repetir a mesma música por mais de 20 vezes. xxx Há cinco anos, desde que voltou para o Brasil, João mora num apart-hotel no Leblon. Ali recebe raríssimas pessoas - mesmo entre seus maiores amigos. Dezenas de tiêtes-stars sonham em falar com o inacessível João. Por telefone, entretanto, João às vezes conversa. Um dia atendeu um telefonema de Elba Ramalho e conversou longamente com a cantora paraibana, acabando por convidá-la para vir ao apartamento. Elba ficou radiante. Antes de desligar João lhe pediu: - "Elbinha, me faça um favor: traga um baralho, destes incrementados, com desenhos diferentes". Radiante, Elba percorreu meio Rio de Janeiro até encontrar um baralho que julgava fosse o desejado por João. Eufórica, foi ao apart-hotel, subiu ao apartamento e apertou a campainha. Uma, duas, três vezes. Finalmente, a porta se entreabriu e João perguntou: - "É você, Elbinha? Trouxe o baralho?" Elba respondeu que sim. João pediu então para ela passar o baralho. Embora estranhando, ela lhe deu o baralho. A porta de fechou e Elba ficou - ao menos aquela vez - sem ver seu ídolo. xxx O maior amigo de João Gilberto em São Paulo é Miecio Daffé, desenhista, pesquisador e dono do maior acervo da MPB. No acolhedor apartamento de Miecio e Edy, João passava horas, ouvindo os discos de Orlando Silva e outros cantores que tanto admira. Baianos de Juazeiro, amigos de infância, Miecio e João ficaram anos sem se ver, devido a longa permanência do cantor nos Estados Unidos. Um dia, Miecio recebe um telefonema de João, que estava em São Paulo com sua nova esposa (depois de Astrud, depois de Miucha), uma americana que não falava uma palavra de português. João foi direto ao assunto: - "Miecinho (João sempre fala com os amigos, usando o diminutivo), preciso de um favor. Você precisa levar minha mulher para assistir uma roda-de-samba. Ela quer conhecer e eu não vou". Miecio surpreendeu-se. Sabia que a esposa da época de João não falava português. Ele não falava inglês. Expôs a questão ao amigo. A resposta veio direta: - "Não faz mal. Você fala o baianês que ela entende..." xxx Lúcio Alves sempre foi um dos cantores mais admirados por João. A voz suave, trabalhada do cantor mineiro, está entre as precursoras (como Dick Farney, Johnny Alf) da Bossa Nova. Assim, quando dirigia o Festival Universitário da Canção, na TV Tupi, Lúcio lembrou-se de convidar João - na época já nos Estados Unidos - para vir fazer um show no Brasil. João, em seu apartamento em Nova Iorque, atendeu o telefonema com o maior entusiasmo ao reconhecer a voz de Lúcio. Conversou durante 3 horas, mas cada vez que Lúcio tentava falar sobre o motivo oficial da chamada, João começava a cantar uma música do repertório de Lúcio e fazer declarações de admiração. Resultado: o telefonema custou uma nota e Lúcio nem chegou a concretizar o convite. xxx Como Guimarães Rosa e outros tímidos famosos, João adora falar com amigos por telefone. Com Jorge Amado, muitas vezes, atravessava madrugadas, papeando sobre os mais diferentes assuntos. xxx Otávio III, figura folclórica e querida no Rio, é um dos maiores amigos de João desde os anos 50. Um dia telefonou para João em Nova Iorque e, naturalmente o papo foi afetuoso e longo. Para que a conta não ficasse ainda maior, Otávio disse que ia desligar. João então propôs: - "Otavinho, por que você não vem para cá? A gente sempre arruma um jeito de hospedá-lo". Otávio se ligou na idéia. Entusiasmou-se e acabou vendendo seu carro para comprar a passagem e foi para a Big Apple. Chegou no aeroporto e ligou para João. - "Oi, João! Estou aqui". - "Que bom Otavinho. Mas agora não posso falar". Desligou o telefone. Otávio III ficou em Nova Iorque até que acabou o seu dinheiro. E não conseguiu nem voltar a falar com João. xxx Miucha, cantora, ex-esposa de João - mãe de Bebel, hoje com 18 anos, já cantando profissionalmente - em depoimento no estúdio Vinicius de Moraes, falando sobre as estórias de João, resumiu numa frase: - "Quem acha que é lenda, é porque nunca viveu com ele. As estórias são muito mais do que se imagina". Durante os anos que foi mulher de João, Miucha era sua intérprete. Afinal, mesmo tendo vivido por mais de 10 anos em Nova Iorque, João nunca aprendeu inglês. Um dia, irritada, ela se recusou a telefonar à copa do hotel e pedir o suco de laranja. Miucha, então conta: - "Foi então que flagrei o João falando em inglês. Direitinho...
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
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29/06/1986

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