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"Fé na Caminhada", o filme da maior utilidade pública

"De uns tempos para cá, não se pode mais falar em caminhada do povo sem falar em caminhada dos mártires. É uma caminhada só". (Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Felix do Araguaia, Goiás). A primeira imagem é de um imenso depósito de lixo. Ali, homens e mulheres, muitas crianças disputam os restos buscando o que possam comer ou revender - num processo terrível de reaproveitamento de detritos. Uma imagem chocante. Ao fundo, a figura alta, forte de um homem de barbas cerradas: frei Leonardo Boff, que, na seqüência seguinte aparece em seu gabinete de trabalho, escrevendo. A ação passa então para Assis na Itália. A festa em homenagem a São Francisco: gente bonita, trajes coloridos, alegra a narração - feita pelo próprio frei Boff (o que já é uma espécie de ironia, já que o castigo que o Vaticano lhe impôs, há alguns anos, foi justamente permanecer meses em silêncio) - situa a grandeza de Francisco de Assis, o jovem rico que encontrou na pobreza e na natureza o seu caminho - transformando-se no santo que mais identifica hoje a Teologia da Libertação. A miséria, liberdade e São Francisco - um tripé no qual o bispo (e poeta) Pedro Casaldáliga elaborou o roteiro e "Fé na Caminhada" (cine Ritz, 5 sessões) - um filme de absoluta utilidade pública. Há filmes de arte como há (a maioria), filmes comerciais. E há também os filmes que podem ser classificados como de utilidade pública. Um filme de denúncia do sistema penitenciário, em suas mazelas, como foi "O Sistema" (The Glass House, 72), de Tom Gries (1922-1977) ou a violência política - praticamente toda a obra do grego Costa Gravas (para ficar apenas nestes exemplos) tem que serem vistos neste prisma: a utilização da força das imagens, a linguagem cinematográfica para, no conforto de uma sala de exibição, provocar o espectador, despertá-lo de seu comodismo para uma realidade próxima - aqui e agora. É isto que obras como "Fé na Caminhada" conseguem. Esteticamente ou dentro de uma visão apenas cinematográfica, talvez este primeiro longa do Conrado Berning, 49 anos, alemão que vive desde 1970 no Brasil (oito anos passou em Foz do Iguaçu, onde começou fazendo filmes em super 8), possa merecer restrições. Há seqüências excessivamente demoradas, um deslumbramento com algumas imagens belíssimas do pantanal mato-grossense - mas mais apropriadas para um filme daquela série "Maravilhas da Natureza" de Walt Disney do que para um obra de extrema visão social como este "Fé na Caminhada". Mas nada disto diminui o valor político, social - a verdadeira utilidade pública - que esta produção da Verbo Filmes (pertencente a ordem do Verbo Divino) realizou ao longo de três anos, coroando uma experiência de mais de 30 filmes curtos que o padre Conrado e sua equipe vem desenvolvendo há sete anos. "Fé na Caminhada" inclui-se ao lado de três outros filmes recentes que trazem a presença da igreja nas questões sociais: "A Igreja da Libertação" de Silvio Da-Rim (já lançado no mesmo cine Ritz); "A Igreja dos Oprimidos", de Jorge Bodanski/Helena Salem (inédito ainda em Curitiba) e o recentíssimo "Deus é Fogo!", de Geraldo Sarno - que aborda o papel da igreja e a Teologia da Libertação em toda América Latina - filmes até agora só apresentados no encontro das organizações Católicas de Cinema, em Quito - e a espera de lançamento comercial no Brasil. Por se concentrar basicamente na questão da luta pela terra, o filme do padre Conrado se aproxima também de duas visões sinceras que jovens cineastas realizaram em torno dos dramas dos bóias-frias: "A Classe Roceira", 86, da curitibana Berenice Mendes (premiado no II Festival de cinema de Fortaleza, agosto/87) e, especialmente, "Terra Para Rose", de Tetê de Moraes (premiado nos festivais de Brasília e Havana, em 1987 - inédito comercialmente). São filmes que trazem para uma linguagem bem mais honesta do que a cobertura parcial (e sintética) dos noticiários de televisão as questões que, nestes últimos 10 anos, tem manchado de sangue o Brasil. Pelo próprio fato de ser uma produção de uma ordem religiosa, independente, "Fé na Caminhada" vai a fundo na questão da caminhada da igreja no Brasil e a câmara do padre Conrado registra assembléias populares em defesa da justiça agrária e do direito de morar, celebrações voltadas para o resgate dos valores da cultura negra (inclusive a Famosa "Missa dos Quilombos", em Recife), ações em favor do menor abandonado e da população dominada pela miséria e homenageia aos que foram assassinados pela intolerância dos latifundiários, dos criminosos, da canalha que defende privilégios para uma minoria. De raras imagens de dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, assassinado em 24/03/1983 (num episódio de que Oliver Stone reconstituiu com imensa honestidade em seu filme "El Salvador - O Martírio de um Povo", 1985) a morte dos líderes sindicais em São Paulo - "Fé na Caminhada" faz com que o espectador mais consciente sinta um nó na garganta, uma sensação de impotência frente a tanta violência cometida contra mártires da luta social. As imagens de D. Oscar Romero, tiradas de um documentário da televisão alemã (e feitos 10 dias antes de seu assassinato) são particularmente densas, quando ele afirmava: "Não matarás e é terrível. Oxalá que estivessem me escutando homens que têm as suas mãos manchadas de homicídio. São muitos, por desgraça. Porque também é homicida aquele que tortura..." Ao longo do filme - rodado em várias partes do Brasil - da fazenda Anoni, no interior do Rio Grande do Sul - A Amazônia - a câmara de padre Conrado abre espaço para a voz da dona de casa, do líder comunitário, do poeta cantador nordestino. Em Andradina, uma lavradora diz: - Como está a nossa nação brasileira, insofrida, doente, tudo por falta de uma idéia bem colocada, diante de nosso País e diante de nosso governo, que ele tem que reconhecer isso na frente da humanidade. Em Cratéus, o evangelizador Gonçalo clama: _ Quando a gente evangeliza a gente denuncia as injustiças e anuncia a justiça. Isso é que se chama evangelizar. Radical? Sim, pode ser que os reacionários, os conservadores, os que defendem privilégios assim classifiquem um filme como "Fé na Caminhada". Mas radical é mostrar a violência, denunciar o arbítrio, trazer um lado da realidade que passa desapercebida no dia-a-dia. Como tão bem disse frei Leonardo Boff: - Quem está em oração não está longe da luta do povo. A vida de cada um comunga com a vida dos outros. Por isso o encontro dos contemplativos com Deus traz força para os fracos, resistência para os que lutam. A liberdade interior reforça a liberdade social e política. Pela força de suas idéias e seriedade dos fatos que aborda e denuncia, um filme como "Fé na Caminhada" não necessitaria ser esteticamente uma obra bem acabada mas, dentro das condições, ele o é. A montagem - no qual muito colaborou o professor e cineasta mineiro José Tavares de Barros (atual presidente da OCIC na América Latina) dá um ritmo intenso, na junção de um imenso material rodado. A trilha sonora (a disposição em um cassete, na livraria do Verbo Divino) mostra até um lado ecumênico de Benito di Paulo, com a bela "Oração de São Francisco", com a participação de seu filho, Rodrigo Veloso, ao lado de outras belas canções: "Cântico das Criaturas", de José Vicente (de Cratéus), "Pai Nosso dos Mártires" (Cireneu Kuhn) e o emocionante "Canta Francisco" (Luiz Augusto Passos) - que costuram sonoramente a luta da igreja, da tão discutida (e pouco entendida por tantos) Teologia da Libertação com as palavras de São Francisco de Assis. As imagens dos bispos mais lúcidos deste País - Dom Helder Câmara, Dom Oswaldo Arns, entre tantos outros religiosos que fizeram a Igreja brasileira chegar ao povo - constituem, em "Fé na Caminhada" um filme para todos verem e discutirem. Principalmente aqueles que a atacam, que vêem em cada posição desta nova Igreja um sinal de comunismo (sic). Realmente "Fé na Caminhada" merece a adjetivação de "filme de utilidade pública". E a sua visão deveria ser matéria obrigatória a todo homem ou mulher que pretende ter qualquer participação política neste nosso País - tão sofrido por culpa dos corruptos, incompetentes e canalhas que procuram se perpetuar no poder. Ao final, entre tantos ensinamentos, fica mais uma frase de frei Leonardo Boff, cujo livro "Francisco Ternura e Vigor" (editora Vozes) foi, como reconhece o padre Conrado, o fio propulsor destes filmes: - A fraternidade que Francisco quer não se realiza só [entre os] humanos, mas também com todos os elementos da natureza. Ela se abre para baixo numa verdadeira democracia cósmica.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
20/03/1988
Alguém saberia como conseguir uma cópia deste filme? Ficarei grato pela informação.
gostaria de receber o filme fe e pe na caminhada

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