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Aramis

Gastronomia e canibalismo com muito requinte visual

Fortaleza Pelo menos três dos filmes exibidos - dois em competição, o francês "Tolerance" e o holandês "O Cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante" - e um hor concours "Rosalie vai às Compras", do alemão Percy Adlon - poderiam merecer críticas especiais de nosso editor gastronômico, o Charles de Gula (Alexandre Krasinski) ou comentários bem humorados do publicitário e apreciador da fina cozinha Sérgio Mercer. Afinal, nos três há uma produção de cenas de preparo de banquetes, com o ritual da mais fina cozinha. Entretanto, ao menos em "Tolerance" de Pierre-Henry Salfati e "The cook, the thief, his wife and her lover" de Peter Greenaway, apesar do deslumbre visual não chega a funcionarem como estímulo a que o público deixe o cine São Luiz e procure as múltiplas opções dos restaurantes da cidade. É que ambos concluem com requintadas cenas de antropofagia, mas vistos dentro de um deslumbramento barroco de imagens que fazem destes dois longas possíveis candidatos a premiação dos Tucanos, especialmente o filme de Greenaway, que desde sua apresentação, em mostra paralela no último festival de Veneza, tem entusiasmado a crítica. Em "Tolerance", num castelo no Interior da França, no século XVIII, nos anos da revolução, a rotina da enfastiada e bela personagem-título (Anne Brochet) é quebrada com o aparecimento de um misterioso ermitão, Assuerus (Rupert Everett, visto em "Crônica de uma Morte Anunciada"), que adota como compensação pelo abandono sexual de seu velho marido (Ugo Tognazzi), mais preocupado com os prazeres da mesa do que da cama. Enquanto o velho nobre passa os dias preparando os mais finos pratos e estruturando uma academia de gastrônomos, Tolerance descobre as "virtudes" de Assuerus - o que provoca ciúmes de seu marido: ao invés de matá-lo faz com que apareça como um outro personagem, após barbeado e lavado, que passa a modificar os destinos de todos os nobres habitantes do castelo - e fazendo com que haja uma tragédia final. Na última seqüência, no mais requintado jantar, é a própria Tolerance que é servida como prato principal - apesar da última imagem deixar dúvidas sobre sua morte ou não. Mais requintado do que o francês Salfati, o inglês Peter Greenaway em "O cozinheiro, o soldado, sua mulher e seu amante" confirma os elogios que vem merecendo internacionalmente, e que o fazem o favorito deste VI FestRio, onde concorre pela Holanda (já que os produtores Kees Kasander e Dennis Eigman são daquele país). Sua formação de artista plástico, montador (função que exerceu por 11 anos) e um longo exercício no campo documental e de programas de televisão (como a série "TV Dante", também apresentado neste festival) fazem com que Greenaway seja hoje um dos mais requintados cineastas. Assumidamente discípulo de Alain Resnais - (cujo fotógrafo Sacha Vierny requisitou para este seu novo longa-metragem) Peter constrói histórias delirantes em linguagem inovadora em termos de narração como fez em "O Contrato da Morte" (Dragthman's Contract, 1982), "Zoo - a zed and two noughts" (1985) a ambos inéditos no Brasil, "A Barriga do Arquiteto" (1987, já a disposição em vídeo) e "Afogando em Números" (1988, breve exibição no cine Ritz). Um filme "huis-clos" em seus espaços - a ação toda se passa praticamente num luxuoso restaurante - o Luna, de propriedade do gangster Spica (Richard Bohringer), que ali, todas as noites, numa imensa mesa - quase que uma alusão herética a Santa Ceia - mostra toda sua agressividade, forma de servir-se e no tratamento cruel que dispensa a esposa Georgete (Heln Mirren) que, em represália, o trai fazendo amor com seu amante, o livreiro Michael (Michael Gambon) no banheiro e na cozinha do restaurante, protegido pelo cozinheiro-chefe (Alan Howard). A fotografia de Sacha Vierny oferece um deslumbramento de imagens, com cenas que parecem decalcadas de telas de grandes mestres - inclusive na tétrica seqüência final no qual o amante Michael, após ter sido assassinado por Spica, é assado explicitamente para, sob a ameaça da infeliz Georgete, de arma na mão, obrigar o marido a comê-lo. Nesta seqüência, a citação visual chega a ser explícita - com uma das obras-primas de Rembrandt ("A Dissecação") vista do fundo do cenário. Greenaway construiu um filme perfeito com uma história densa (embora aparentemente absurda) e que conduzida ao som de uma trilha sonora de toques clássicos e solos operísticos faz com que o espectador viaje num mundo mágico, delirante, de imagens que mostram um cinema renovado(r). A violência, o sarcasmo, o barroquismo de imagens - a câmara ágil de Sacha Vierny em longas panorâmicas, numa perfeição de imagens (praticamente não há cenas exteriores e toda a ação se passa à noite, ao longo de uma semana, identificados os dias através de um gongórico cardápio), são elementos que fazem de "The cook, the thief..." daqueles filmes para a inteligência, abertos a múltiplas interpretações - e que, na metade do festival (foi exibido na terça-feira) marcou a elevação do nível dos trabalhos competitivos, já que os primeiros longas apresentados, com exceção do brasileiro "Que bom te ver viva", de Lúcia Murat, foram decepcionantes. xxx Comédia divertida, inteligente e satírica ao consumismo do Amercian Way of Life, "Rosalie vai às Compras" segundo filme hor concours aqui apresentado (os outros dois foram "Recordações da Casa Amarela", do português João César Botelho e "Splendor", do italiano Ettore Scola (exibido ontem), de certa forma retorna a personagem de "Out of Rosenhein" (ou "Bagdá", vencedor do IV FestRio, em 1987). A simpática gordinha alemã interpretada por Marianne Sagebrecht (que há dois anos veio atuar em "Sob o Sol de Parador", de Paul Zuckermann, rodado em Ouro Preto (MG), e agora Rosalie, casada há 17 anos com Ray (Brad Davis, de "O Expresso da Meia Noite" e "Querelle"), que conheceu durante a guerra, na Baviera. A família - 7 filhos - vive numa fazenda em Arkansas e enquanto Ray trabalha pulverizando com seu avião as plantações, Rosalie gasta sua tardes fazendo compras nos supermercados individando-se cada vez mais com seus 37 cartões de crédito e dezenas de talões de cheques. À noite, a família unida vê os comerciais na televisão num ritual divertidíssimo, grande parte das compras de Rosalie são de finos ingredientes culinários para que um de seus filhos torne-se um grande mestre-cuca - o que garante requintados jantares para a família. As dívidas não preocupam a otimista Rosalie, que partindo do conselho de "se você deve US$ 100 mil a um banco o problema é seu, se deve US$ 2 milhões, o problema é do banco" mostra que a solução é rolar a dívida - o que levou ao comentário de que ela seria uma boa ocupante do nosso Ministério. Percy Adlon, de quem o público pode assistir "Zuckerbaby" (também com Marianne Sagebrecht, à disposição em vídeo) construiu uma comédia agradabilíssima, satírica e que tem tudo para chegar aos circuitos comerciais. A não ser que a estupidez dos distribuidores seja tão grande que não percebam as possibilidades comerciais deste filme levado a Cannes-89 e que vem fazendo boa carreira na Europa e Estados Unidos.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
30/11/1989

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