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Aramis

Gente humilde

"Quando eu passo no subúrbio/ eu muito bem vindo de trem de algum lugar/ e ai me dá como uma inveja dessa gente/ que vai em frente sem nem ter com quem contar/ São casas simples/ com cadeiras na calçada e na fachada/ escrito em cima que é um lar. Pela varanda/ flores tristes e baldias/ como a alegria que não tem onde encostar" ("Gente Humilde", Vinícius de Moraes/ Chico Buarque) xxx A primeira imagem de "Anjos do Arrabalde - As Professoras" (cine São João, 5 sessões), focaliza uma jovem, Aninha (Vanessa Alves), violentada por um motoqueiro, Nivaldo (Kiko Guerra), num terreno baldio na periferia da cidade. É um ponto elevado, de onde se descortina a cidade e os edifícios que se aproximam da região. Esta seqüência de abertura coloca um dos aspectos estéticos do filme de Carlos Reichenbach, merecidamente, o grande vencedor no Festival de Gramado neste ano: a visão do subúrbio, externa, captando os espaços livres que, pouco a pouco vão se integrando à megalópolis - em toda sua estrutura de violência. Em "Filme Demência", que, em 1986, já lhe havia valido o Kikito de melhor diretor no XIV Festival de Cinema Brasileiro de Gramado, Reichenbach, 42 anos, propunha um mergulho no universo íntimo de um industrial falido, ao longo de uma longa noite de procura e indagações, com a angustia dos personagens de Goethe e Marlowe, numa versão paulista e contemporânea do mito de Fausto. Menos de um ano depois, numa volta de mais de 200 , o mesmo Reichenbach troca a noite do centro urbano pelo dia do subúrbio e neste "Anjos do Arrabalde" constrói um dos mais sinceros e envolventes filmes sobre a gente humilde de uma grande cidade. Ao intelectualismo de seus dois últimos filmes - o erótico-filosófico "Extremos do Prazer" (1983/84, que no Festival de Gramado, em 1985, lhe valeu prêmio especial do júri) e "Filme Demência" - Reichenbach, com competência volta-se a uma linguagem Neo-Realista, assumidamente em homenagem a um de seus cineastas favoritos, o italiano Valerio Zurlini (1926-1982), embora, ao longo dos 104 minutos de projeção de "Anjos do Arrabalde - As Professoras", sinta-se toques de outros cineastas - tanto europeus como até o japonês Imamura Shohei declaradamente citado na seqüência em que as professoras Dalia, Rosa e Carmo são levadas pelo jornalista Carmona a assistir "A Balada de Naraiama" ("Narayama Bushi-Ko", 1983), refilmagem do romance de Shichiro Fukazawa que, em 1958, já foi transposto à tela por outro cineasta nipônico, Keysuke Kinoshita. Tratanto da velhice, da morte e da vida, "A Balada da Naraiama" (visto em Curitiba apenas 5 dias, no antigo Bristol e com reprise prometido no Groff) é apenas uma amorosa citação que Reichenbach faz, em seu filme, de um dos realizadores que mais curte. xxx Um parque de diversões de subúrbio, daqueles de aspecto decadente, ponto de lazer dos jovens da periferia, é outro cenário que emoldura a paisagem. a Escola do 1º Grau Luis Sergio Persom (homenagem ao diretor de "São Paulo S/A", falecido em 1976, aos 40 anos e que foi o primeiro professor de cinema de Reichenbach), no qual as professoras Dalia (Betty Faria) e Rosa (Clarice Abujamra), ensinam - e que é visitada pela ex-mestre, Carmo (Irene Stefania), na primeira seqüência, é também um referencial importante. Talvez pela primeira vez no cinema brasileiro, a escola primária - e as professoras - são colocadas num filme como elementos centrais, no que valeu a vivência que Reichenbach captou de suas cunhadas e esposa, a cirurgiã--dentista, Lygia - que, alías, aparece numa curta seqüência. Esta linguagem realista, quase documental, é que envolve o espectador e faz com que "Anjos do Arrabalde" cresça a cada seqüência. O roteiro (o argumento original) de Reichenbach entrosa vários personagens, todos humildes - exceto o Carmona (declaradamente inspirado no poderoso Mini Carta, uma das estrelas do jornalismo paulista) e que transmitem a empatia para o público disposto a receber um filme desprovido de sofisticação, de cores reais. Aliás, nisto talvez resulte um dos problemas que faz com que apesar de seus méritos, "Anjos do Arrabalde" não atinja a bilheteria que merecia (tanto é que, dificilmente ganhará uma segunda semana no cine São João, restando a opção de assistí-lo em vídeo, já à disposição nas locadoras). Não há cenas de sexo - embora em duas seqüências, tenha a seminudez de Betty, Clarice e Vanessa), o argumento gira em torno de pessoas pobres, muitas vezes em ambientes humildes - quando se sabe que há a grande parcela do público que, como diz o carnavalesco Joãozinho Trinta, "gosta de luxo e ostentação". Tendo Aninha, uma manicure de bairro, que vive com um operário, João (Silas Gregório), como fio condutor, "Anjos do Arrabalde"se concentra na vida de três professoras - Dalia, Rosa e Carmo, que foram colegas na Escola Normal e vivem e trabalham na periferia de São Paulo. Embora não identificado, o bairro é de Pirituba, na zona Oeste de São Paulo - que começa a receber uma empobrecida classe média, fenômeno urbano já detectado, aliás em outro filme, o interessante "Jogo Duro", 85, de Ugo Gregoretti (inédito em Curitiba). Henrique (Enio Gonçalves), marido de Carmo - que obrigou-a se afastar da profissão de professora, ex-policial, advogado de porta-de-cadeia, busca uma ascensão social, mantendo seus vínculos com os antigos colegas, especialmente o delegado Gaúcho (Carlos Koppa). Machista, não gosta que sua mulher reveja suas colegas, especialmente Dalia (Betty Faria), inteligente, independente e com a vida pessoal complexa: bisexual, divide uma (boa) casa com seu irmão, Afonso, um tipo meio anormal que passa os dias perambulando pelo bairro. Rosa (Clarice Abujamra, em seu primeiro trabalho no cinema), é uma mulher solitária, irritada, que mantém um caso amoroso com Soares (José de Abreu), supervisor de ensino, casado e que se revela um mau caráter. Mora num minúsculo apartamento que paga, com sacrifício, ao BNH. O casal Carmo e Henrique vive tentando aproximá-la do delegado Gaúcho, um romântico brega. Estes personagens são desenvolvidos em seqüências claras, nas quais se penetra num universo simples, mas de força humana, graças à linguagem realista de Reichenbach. Há uma violência implícita na solidão & desejos de cada um, que explode, na última parte, fazendo lembrar, remotamente, alguns personagens de "Sob o Domínio do Medo" ("The Straw Dogs", 1971, de Sam Peckinaph): a pressão que faz as pessoas serem levadas a reações sangrentas - o assassinato do violentador ou a tentativa de suicídio por parte da solitária Rosa. "Anjos do Arrabalde - As Professoras" é o filme que se volta a um Brasil atual e de raízes, simples com o subúrbio, sua gente, seus pequenos dramas do cotidiano - material que proporcionou a Cacá Diégues realizar uma de suas melhores obras, "Chuvas de Verão", (1978), e ao qual retorna, agora, com "Um Trem Para As Estrelas" (1986, inédito nacionalmente, mas que representou o Brasil no último festival de Cannes). Para se absorver e entender toda a dimensão de "Anjos do Arrabalde" é preciso se despir de preconceitos que ainda asfixiam a visão do cinema brasileiro. Reichenbach é hoje um autor de reconhecimento internacional, do que é uma prova o fato de há três anos ser o convidado para o Festival de Cinema de Roterdam, na Holanda, que busca justamente obras de características pessoais. Desde sua estréia no longa-metragem (1971, "Corrida em Busca do Amor"), tem buscado uma linguagem própria - e considera este seu "Anjos do Arrabalde" um complemento à trilogia iniciada por "Lilian M. Relatório Confidencial" (1975) e "Amor, Palavra Prostituta" (1980), filmes que, infelizmente, passaram despercebidamente, confundidos como porno-produções (quando nunca foram), e que mereciam, agora uma revisão dentro de uma retrospectiva Reichenbach que Romeu Grimaldi, da Cinemateca Paulo Amorim, de Porto Alegre, tenta promover há um ano - e que poderá ter sua passagem por Curitiba. A projeção de "Anjos do Arrabalde", no São João, é prejudicada pelo som. Muitos diálogos são quase impossíveis de ser entendidos, o que provoca natural irritação no público - problema aliás, que atinge todo a produção nacional, vítima da precariedade das salas de exibição (mesmo nos festivais de Brasília e Gramado, há sempre reclamações em relação à projeção e, especialmente, ao som). Entretanto, mesmo com deficiências na projeção, não se deve deixar de enaltecer a fotografia, no qual os elogios são divididos entre Reichenbach e o seu câmera, Conrado Sanchez. Carlão nunca abre mão de supervisionar a fotografia - ele que vêm de uma formação profissional nesta área - e, considerando os cenários externos, busca utilizar os recursos da grua com seqüências panorâmicas - especialmente na focalização dos personagens que se encontram no parque de diversões. Outro ponto alto do filme é sua trilha sonora. A dupla Manoel Paiva e Luiz Chagas desenvolveu temas marcantes - sabendo dosar o lirismo das imagens em que com a visão pela janela, se tem da solidão da personagem Rosa, ao uso da percussão como elemento dramático, além de temas incidentais. Revelados já em "Filme Demência" e tendo também feito a trilha sonora de "Quincas Borba" (1987, de Roberto Santos), Paiva e Chagas são dois compositores que mostram competência. O elenco não poderia estar melhor: Betty Faria ganhou o Kikito de melhor atriz ( dividido com Marília Pêra, por "Anjos da Noite", de Wilson de Barros) e Vanessa Alves, uma revelação (até agora havia sido vista apenas em papéis menores, inclusive em "FIlme Demência") o prêmio de melhor coadjuvante. Clarice Abujamra - que tem uma notável semelhança física com Beth Mendes (agora secretária da Cultura de São Paulo), também poderia ser premiada, assim como Emílio Di Biasi. Ricardo Blat, como o neurótico Afonso, cria um tipo marcante e Nicole Puzzi, em curta aparição no final, como a repórter Fernanda, transmite extrema sensualidade implícita. Um filme brasileiro, realista, sincero e emocionante, "Anjos do Arrabalde - As Professoras", melhor filme em Gramado-87, merece ser visto por quem se interessa pelo melhor cinema contemporâneo. LEGENDA FOTO - Marcia Regina e Vanessa Oliveira [Alves] (melhor atriz coadjuvante, Gramado-87) em "Anjos do Arrabalde - As Professoras", de Carlos Reichenbach. Um filme de ótimo nível, em exibição no São João.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
17
03/06/1987

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