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Aramis

"Kangaroo", o intelectual e o fascismo na Austrália

Uma (profunda) reflexão sobre o comportamento do intelectual frente ao poder, a ideologia e a introspecção humana. Esta pode ser uma das definições de "Kangaroo" (Cinema I, 4 sessões), mais um surpreendente lançamento da Alvorada que chega silenciosamente e, como tem acontecido com tantos filmes excelentes, fracassa totalmente (domingo, na sessão das 18 horas, havia apenas 5 espectadores). Produção australiana, dirigida por um realizador (ainda) desconhecido no Brasil, Tim Burnstall, tem no fato de ser baseado num romance, com toques autobiográficos, do escritor inglês D. H. Lawrence, uma das poucas motivações ao público. Trata-se, entretanto, de uma admirável mostra de colocação na tela de um tema que, em qualquer época, situação ou espaço geográfico, mantém-se atual: a opção que cada um deve fazer frente a um momento político, mesmo quando, aparentemente, as luzes do poder e da realização pessoal tornam-se fascinantes. O escritor Richard Sommers (Collin Friels), enojado com a falta de perspectivas de uma vida digna na Inglaterra - acusado de ser um autor pornográfico e espião, pelo fato de ser casado com uma alemã, Harrieth (Judy Davis), ao se integrar a movimentos contrários ao envolvimento na I Guerra Mundial, passa a sofrer perseguições. Seis anos depois está na Austrália, país que, pela sua forma de vida, o asfixia. O relacionamento com um casal de vizinhos - Jack Colcott (John Walter) e Vicky (Julie Nihill), ele herói na guerra, o leva a conhecer um movimento paramilitar, liderado por um general de tendências fascistas, conhecido pelo cognome de "Kangaroo" (Hugh Kays-Byrne). Este, a procura de um intelectual que assuma a função de porta-voz de seu movimento direitista, convida Sommers para editar um jornal. O mesmo convite é feito pelo líder do movimento sindical, Willie Strutcher - o maior inimigo de "Kangaroo", também buscando um editor para o jornal que represente o movimento operário australiano. As tensões crescem e terminam num massacre dos operários, numa assembléia sindical - com 19 mortes e o atentado a "Kangaroo". Sommers, testemunha de todo o processo, toma uma posição coerente e corajosa, sem heroísmo momentâneo, mas profundamente humano e digno. Embora apontado como uma ficção sobre um imaginário golpe fascista na Austrália nos anos 20, "Kangaroo" foi um romance com muitos toques autobiográficos da vida de Lawrence. Assim como a idéia de um movimento paramilitar, ameaçador da democracia na distante Austrália ("um país que tudo conseguiu sem lutas e que por isto parece tão insosso", diz um dos personagens), não soa como pura ficção. Também o relacionamento sexual entre os personagens - leit motiv da obra do autor inglês - é colocado sutilmente. A sugestão de um "swing" entre os casais Sommers e Colcott (aceita por Vicky mas recusada por Harrieth) e o claro homossexualismo latente do fascista "Kangaroo" foram mais aprofundados no romance publicado em 1923. O roteirista Evan Jones trabalhou, entretanto, com felicidade os personagens e as situações, obtendo uma linguagem exemplar - que faz o filme crescer a partir dos 30 primeiros minutos. A fotografia de Dan Bernatall, utilizando amplamente os recursos do cinemascope, capta os belos exteriores do litoral australiano - com ao menos uma seqüência antológica: a cena de amor entre Richard e Harrieth na praia, sensualidade que lembra a famosa cena de Deborah Kerr e Burt Lancaster em "A um Passo da Eternidade" (1953, de Fred Zinnemann). A música, com toques sinfônicos (Nathan Warks) também contribui. É, entretanto, a colocação dos personagens e o desenvolvimento de um questionamento do intelectual aparentemente frágil e perplexo, entre suas angústias e insegurança pessoal, para uma posição firme - que dá a "Kangaroo" dimensão de obra questionadora de valores - marcante e bem realizada. Além de ter o mérito de despertar o interesse pela obra de Lawrence, erroneamente apenas identificado pelo proibido "O Amante de Lady Chatterley". LEGENDA FOTO - Kangaroo (à esquerda), o líder fascista australiano, cumprimenta o escritor Sommers: o intelectual e a política num filme vigoroso. Ainda hoje, em exibição no Cinema I.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
19/10/1988

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