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Aramis

Lady Day, 30 anos de saudade

Selma de Castro, double de professora universitária e cantora, havia até encomendado um vestido sofisticado, inspirado nos modelos que Billie Holiday usava. Chegou a procurar uma orquídea branca, marca registrada da cantora de "My Man" em suas apresentações. E, principalmente, havia ensaiado todo um repertório especial para um espetáculo que marcaria uma efeméride: os 30 anos da morte da maior cantora de jazz de todos os tempos, que serão lembrados nesta segunda-feira, 17 de julho. Infelizmente, o show ficou no projeto. Dificuldades operacionais, a começar com os ensaios que teriam que ser com os pianistas Fernando Montanari ou Gebram Sabbag - dos poucos capazes de, aos teclados, passar toda a sensibilidade e dramaticidade das canções de "Lady Day" até a falta de um empresário da noite curitibana (será que ele existe?) disposto a bancar um espetáculo de nível. Assim, excetuando-se a isolada homenagem radiofônica que Caetano Cerqueira Rodrigues, milionário apaixonado por jazz e vice-presidente do Blue Note Jazz Club, promove hoje em seu programa ("Jazz in Time", Ouro Verde FM, 19 às 20 horas), nada mais lembrará, em termos locais, os 30 anos da morte de Billie Holiday. Seus fãs - e que são muitos - terão que se contentar em, individualmente, curtir suas gravações, sejam as importadas ou as que tem, felizmente, saído entre nós em edições da Imagem, CBS ou Polygram - por sinal, a que colocou na praça, há alguns meses, "The Last Sessions" (somente em CD), contendo as últimas gravações feitas por Billie no primeiro semestre de 1959, quando atravessava já a fase terminal de sua vida. xxx "Lady Day" - como a apelidou, carinhosamente, o saxofonista Lester Young, morto, ironicamente, aos 50 anos, quatro meses antes de Billie, ficou na história do jazz como a personificação do canto dramático e sofrido - mas maravilhoso e esplêndido - de uma música imortal. Nascida em Baltimore, a 7 de abril de 1915, filha de uma menina de 13 anos, criada na maior miséria, Billie teve vida das mais trágicas. Explorada pelos homens que a viciaram em drogas pesadas, infeliz no amor, sofrendo de doenças sérias, brilhou, entretanto, com sua voz perfeita, a partir de 1930, quando começou a cantar em clubes no Harlem, em Nova Iorque (Jerry Preston's, Log Cabin, The Yeah Man, etc.). Seria, entretanto, o produtor John Hammond que sentiria suas incríveis possibilidades e que a apresentaria a Benny Goodman (1909-1986), com quem faria suas primeiras gravações. Começaria então, uma fase de sucesso, com apresentações e gravações com orquestras como a do pianista Teddy Wilson, Count Basie e Artie Shaw. Em 1964, participaria de um filme - o único de sua vida (embora existam trechos de cinejornais e documentários da época em que aparece), chamado "New Orleans". Lester Young saberia vê-la na maior extensão de seu talento - perdido muitas vezes em temporadas menores. Duas excursões pela Europa (1954/58) internacionalizaram-na junto aos centros que mais curtem jazz, sendo que na segunda temporada, consumida pelas drogas - e sempre perseguida pelas autoridades de combate aos narcóticos - já estava distante dos anos gloriosos. Em sua autobiografia ("The Lady Sings the Blues", edição em português da Brasiliense), e mesmo na cinebiografia interpretada por Diana Ross, o público pode conhecer um pouco mais sobre sua vida - enquanto que em quase uma centena de gravações, distribuídas por dezenas de etiquetas, ficaram os registros de 36 anos de sua voz privilegiada. Difícil mesmo para um expert como José Domingos Raffaeli, a maior autoridade em jazz no Brasil, fazer uma justa discografia de Billie: as sessões das quais participou, a partir de 1933 e até poucas semanas antes de sua morte, tiveram inúmeros aproveitamentos, desde as montagens mais respeitosas até produções caça-níqueis, preocupadas apenas em faturar com sua voz perfeita. No Brasil, só nos últimos anos é que seus discos passaram a ser editados - assim mesmo de uma forma desorganizada, com reedições e remontagens de várias épocas, em que pese algumas boas edições integrais. Antes de Billie, houve Bessie Smith (Chattanooga, Tenneessee, 1984 - Clarksdale, Mississippi, 1937), também com uma visão dramática (morreu vítima de um acidente automobilístico, porque os hospitais se recusaram a atendê-la devido a ser preta), a chamada "Empress of the Blues" - e cuja obra gravada, na maior parte, foi lançada no Brasil pela CBS (a editora José Olympio promete a edição de um livro a seu respeito). Antecedendo a Bessie e a Billie, houve Ma Rainey (Gertrude Malissa Nix Pridgett, 1886-1939), esta sim, ainda totalmente ignorada no Brasil - mas cujo canto negro e profundo, seria a raiz de toda uma geração de cantoras. xxx Na riqueza sonora da música americana - na qual as jovens cantoras contemporâneas dos anos 70/80 tem sabido, inteligentemente, buscar influências de Billie, Bessie e mesmo Ma Rainey, há muito para ser ouvido e conhecido. Uma Ella Fitzgerald, praticamente aposentada devido aos problemas de saúde, aos 71 anos - completados no dia 25 de abril, ou a ainda vigorosa Sarah Vaughan, 65 anos - comemorados no dia 27 de março último, felizmente, ainda em plena atividade, há toda uma galeria de grandes vozes femininas, negras e profundamente eternas em sua beleza e dimensão. 30 anos depois de sua morte num hospital nova-iorquino, Billie Holiday está mais do que nunca viva em sua sensibilidade. E assim estará, esperamos, para quem saiba ouvi-la no próximo século.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
16/07/1989

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