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Aramis

Liberdade em branco & preto

Uma das (tolas) acusações feitas pelos críticos que insistem em negar validade maior a "Um Grito de Liberdade" é o fato de que Richard Attenborough mesmo querendo fazer um filme sobre um mártir negro acabou exaltando um "herói" branco - o jornalista Donald Woods, que se tornou amigo, defensor e biógrafo de Steve Biko (18-12-1946/12-09-1977), fundador do Black Consciousness, assassinado pela polícia de segurança após horas de tortura. O inglês Attenborough é branco, aristocrata e ganhou até um título de "Sir" pelo seu trabalho em mais de 100 peças e filmes como ator e 7 longas como diretor nos últimos 20 anos. Sua visão não pode deixar de ser a de um europeu culto e liberal, mas isto não faz, em momento algum, seu filme parcial, assim como o jornalista Donald Woods, 55 anos, filho de um comerciante que trabalhava no interior do território Transkei (o que faz uma vivência com crianças da raça Bantu, aprendendo inclusive idiomas nativos) também sempre foi um branco na Inglaterra e coberto conflitos raciais no Alabama (quando conheceu Robert Kennedy), ao voltar para a África do Sul, em 1960, fez rápida carreira no Daily Dispatch, um centenário jornal independente, propriedade de uma fundação beneficente, a Crewe Trust, que justamente por isto possibilitou uma posição de oposição aos excessos do apartheid - e em defesa de Biko - até onde foi possível. Biko foi antes de tudo um líder estudantil, formado justamente nos explosivos anos 60 e que mesmo admitindo as posições antidiscriminatórias da Unesa, órgão nacional dos estudantes africanos, achava que os negros deveriam ter sua própria união, o que levou a fundar a Oesa - Organização dos Estudantes Sul Africanos. Apesar das dificuldades de um garoto negro, pobre, chegou a se matricular na Universidade de Natal para estudar Medicina, em 1966, mas envolveu-se tanto em política que abandonaria o curso (mais tarde, na prisão, tentou fazer o curso de Direito, por correspondência). No início, seu orgulho racial chegava a irritar Woods e outros liberais contra o apartheid, mas que também eram contra um racismo negro. Bastaram, entretanto, alguns contatos com Biko, para ele perceber a importância da Consciência Negra como movimento de afirmação dos negros que há 400 anos são explorados da forma mais cruel pelos brancos da África do Sul. A liderança de Biko surgiu justamente no vácuo provocado pela prisão de Nelson Mandela, o grande líder revolucionário daquele país, condenado à prisão perpétua e há 26 anos, em Robben Island - enquanto sua esposa, Wandy Mandela, continua a sua luta, sensibilizando todo o mundo civilizado pela causa negra. Em 1970, Biko casou-se com Nontsikelo (Nitsiki) Mashahalaba e tiveram dois filhos. Três anos depois, devido sua liderança política - e após vários processos - foi condenado ao confinamento em King William's Town, em verdadeira prisão domiciliar. Apesar disto, ali desenvolveu um trabalho comunitário e continuou a manter sua liderança, inclusive com algumas atuações públicas - o que o levaria a ser preso em agosto de 1977 e, vítima da tortura, morrendo a 12 de setembro. Biko seria apenas mais um entre dezenas de líderes da África do Sul, presos e mortos na prisão - com as mais absurdas desculpas, se Donald Woods, revoltado com a sua morte, após ter sido também confinado à sua casa, não conseguisse, num lance aventuresco, fugir da África do Sul em 31 de dezembro de 1977 para, em Londres, onde vive, com a esposa, Wendy, e os 5 filhos, continuar a denunciar os fatos, em livros e conferências. De dois de seus livros - "Biko" e "Asking for Trouble" foram extraídos o material básico para o roteiro enxuto e objetivo do próprio Attenborough. A edição no Brasil de "Biko" (Editora Best Seller, tradução de Edi Oliveira 457 páginas) permite verificar a coerência com que o cineasta procurou tratar o argumento, evitando excessos e paixões de aflorar frente aos fatos tão revoltantes narrados.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
3
01/06/1988

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