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Aramis

Marty abriu as portas de um cinema realista

A festa de entrega dos Oscars em 1955 foi extremamente romântica. Afinal, quatro dos cinco indicados traziam histórias de amor. O favorito era a superprodução de Buddy Adler, na Fox, "Suplício de Uma Saudade" (Love Is A Many Splendored Thing), direção de Leo McCarey, sobre a trágica paixão entre um jornalista americano, Mark Elliot (Willian Holden) e a médica eurasiana Han Suyn (Jennifer Jones) vivendo numa Hong Kong que ganhou o seu maior comercial turístico, ao som da enternecedora música de Sammy Cahn e Francis Paul Webster, até hoje embalando romances. O mesmo William Holden, mas vivendo um desajustado personagem na busca de sua realização, em "Férias de Amor" (Pic-Nic, da peça de William Inge) e que acaba se apaixonando pela noiva, Madge Owens (Kim Novak, então com 22 anos, no auge de sua beleza), de seu melhor amigo, Alan (Cliff Robertson) estavam em outro dos filmes favoritos. Da peça de Tennessee Williams, "A Rosa Tatuada", a dramática Serafina Delle Rose (Anna Magnani) tinha um tórrido (e culposo) caso de amor com o esfusiante Álvaro Mangiacavallo (Burt Lancaster) em outro dos filmes que disputavam o Oscar há 33 anos. Havia também toda a dimensão social, mas tratada em forma de comédia de Frank Nugent e Joshua Logan sobre um oficial da Marinha Americana, em "Mister Roberts" (iniciado por Mevyn Le Roy mas completado por John Ford). Entretanto, o grande vencedor da 27ª festa de entrega do Oscar foi, surpreendentemente, do filme mais modesto, autêntico azarão do páreo: "Marty". Produção de Harold Hecht, com distribuição da United Artists, não tinha intérpretes famosos ou bonitos. Ao contrário, era a história dos dias cinzentos e noites solitárias de um gordo, feito e inseguro açougueiro do bairro do Bronx, em Nova Iorque, Marty Piletti (Ernest Borgnine) e de seu encontro com uma solteirona, também feiosa, Clara Snyder (Betsy Blair) e igualmente carente afetiva. Uma história simples, em 99 minutos, que originalmente havia sido apresentada na televisão, tornava-se o grande acontecimento: era premiado com os Oscars de melhor filme, direção (Delbert Mann, então com 35 anos, vindo da televisão e estreando no cinema) roteiro (Paddy Chayfsky) e ator principal (Borgnine). Era a primeira vitória de um "cinema novo" que acontecia nos Estados Unidos. Ao invés de superproduções com astros famosos e grandes histórias, um voltar de olhos para o mundo das pessoas simples, muitas vezes derrotadas - os loosers que são sempre vistos preconceituosamente -, mas de imensa riqueza humana. O reconhecimento dos méritos de "Marty" abria caminho para que, vinda da televisão, numa geração inquieta e de grande criatividade pudesse abordar, na simplicidade do branco e preto, temas atualíssimos da sociedade urbana, com obras que revistas hoje (e a Rede Globo tem, às quartas-feiras, reprisado estas antológicas produções) mostra-se um dos períodos mais profundos e sérios do cinema americano, no qual a verdade, a honestidade, o real, substituía o glamour da ilusão. Paddy Chayfsky (1923-1981) seria o grande autor desta fase marcante do cinema americano, pois vindo das teleplays, trouxe os argumentos básicos para que fossem dissecadas faces incômodas do american way of life - como a solidão conjugal ("Despedida de Solteiro"/57, direção do mesmo Delbert Mann), o comportamento da classe média ("A Festa do Casamento", 1956, de Richard Brooks), a busca do sucesso ( "A Deusa", 1958, de John Cromwell), entre outros textos marcantes. Este desnudamento do cinema americano, com filmes surpreendentemente de baixo orçamento e tocando em temas tabus estimularia outras produções como "A Embriaguez do Sucesso" (Sweet Smell of Sucess), que Alexandre MacKendrick fez em 1957, na mais sincera e corajosa denúncia sobre o colunismo irresponsável na grande imprensa, numa obra tão polêmica que seria boicotada pelos mais poderosos tycoons do jornalismo - até mesmo no Brasil, onde Ibrahim Sued sentiu-se "injuriado" pela figura negativa do colunista-canalha que Burt Lancaster interpretava no filme (reprisado há poucas semanas na televisão). Reminiscências de filmes desta fase - e que hoje retornam ao vídeo, graças à criteriosa seleção dos programadores de filmes das redes nacionais de televisão, além do vídeo-cassete (infelizmente, até agora, nenhum destes títulos foi lançado em vídeo selado no Brasil) torna-se possível de serem conhecidos nos espectadores mais jovens. (Re) vistos hoje, filmes como "Marty", "Despedida de Solteiro", "A Festa do Casamento" ou, especialmente, "A Embriaguez do Sucesso" conservam toda a força e grandeza com que foram concebidos - na pureza e sinceridade de suas imagens em preto-e-branco. Imagens fortes, de gente como a gente e que, numa extrapolação contemporânea, são lembrados a propósito de um filme magnífico como "Feitiço da Lua", merecidamente candidato a várias categorias ao Oscar e um dos melhores do ano.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
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05/04/1988

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